São mais de 6 milhões de famílias sem moradia
Dia 31 de outubro venceu o prazo da ADPF 828 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental da Constituição), do Supremo Tribunal Federal (STF), que proibia despejos no país no campo e na cidade, em ocupações coletivas e em casos de inquilinos individuais durante a pandemia. Os partidos PSOL e PT, RENAP[1] e Terra de Direitos[2], e dezenas de outras Organizações de Direitos Humanos pleitearam pela 4ª vez “a extensão do prazo da medida liminar concedida até que advenha o julgamento de mérito da ADPF 828, ou por mais 6 (seis) meses ou até que cessem os efeitos sociais e econômicos da Pandemia da covid-19 e, deste modo, continuem sendo e/ou sejam suspensos todos os processos, procedimentos ou qualquer outro meio que vise a expedição de medidas judiciais, administrativas ou extrajudiciais de remoção e/ou desocupação, reintegrações de posse ou despejos de famílias vulneráveis, enquanto perdurarem os efeitos sanitários, sociais e econômicos da Covid-19.”
O ministro do STF Luis Roberto Barroso não estendeu o prazo da ADPF 828. Entretanto, o ministro Barroso determinou um Regime de Transição para que, “de forma gradual e escalonada”, “para não gerar convulsão social”, se retome o cumprimento de reintegrações de posse, mas com a condição de que seja garantido alternativa digna, adequada e prévia para todas as famílias das ocupações para que o direito à moradia seja garantido, conforme prescreve a Constituição Federal.
Injustiça urbana
A brutal injustiça agrária no Brasil, que concentra 50% da terra nas mãos de apenas 2% de pessoas ou empresas, tem impulsionado um imenso êxodo rural nos últimos cinquenta anos e gerado uma dramática injustiça urbana. Que leva à existência atual de um altíssimo déficit habitacional no país, com mais de 6 milhões de famílias sem moradia no Brasil e sendo que mais da metade da população de 215 milhões de pessoas vive em condições inadequadas de moradia, e 52%, segundo dados de 2019, pagam aluguel acima de 30% de sua renda.
Nos últimos quatro anos, com o empobrecimento das famílias, durante o desgoverno do inominável, aumentou-se o número e a quantidade de favelas nas cidades médias e grandes do Brasil.
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Pesquisa realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 2021 revelou que 31% das pessoas estão na rua há menos de um ano, sendo 64% por perda de trabalho, moradia ou renda. Destes, 42,8% afirmaram que, se tivessem um emprego, sairiam das ruas.
Pesquisa do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (POLOS-UFMG) revelou que, em 2019, eram 174.766 pessoas em situação de rua no país, enquanto, em setembro de 2022, o número saltou para 213.371. A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN), registra o avanço da fome: são 15,5% de domicílios com pessoas passando fome, o que corresponde a 33,1 milhões de pessoas.
Estão em ocupações famílias inteiras, pessoas desempregadas que, para não irem para as ruas, ocuparam terrenos e prédios abandonados, que não cumpriam sua função social. Cerca de 75% de quase um milhão de pessoas ameaçadas de despejo são mulheres, crianças e idosos; são pessoas que não suportam mais a pesadíssima cruz do aluguel ou a humilhação que é sobreviver de favor nas costas de parentes ou ainda sobreviver nas ruas.
Vitória
Foi imprescindível e vital a decisão do STF de suspender os despejos durante a pandemia da covid-19. O STF acolheu reivindicação da Plataforma Despejo Zero, Campanha Nacional por Despejo Zero, integrada por 175 Movimentos Sociais Populares e Organizações de defesa dos Direitos Humanos.
Se a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da comunidade científica era ficar em casa para evitar pegar covid-19, teria sido um massacre brutal empurrar para as ruas cerca de 500 mil famílias, cerca de 2 milhões de pessoas, que estão em ocupações no campo e na cidade no país.
Segundo levantamento da Plataforma Despejo Zero, se tivesse simplesmente terminado a ADPF 828, cerca de 1 milhão de pessoas, seriam despejadas imediatamente e jogadas na rua
Atualmente, segundo levantamento da Plataforma Despejo Zero, se tivesse simplesmente terminado a ADPF 828, a que proibiu os despejos até 31/10/2022, cerca de 200 mil famílias, ou seja, quase 1 milhão de pessoas, seriam despejadas imediatamente e jogadas na rua.
Entretanto, após adiar por três vezes a proibição de despejos durante a pandemia, exceto os ministros bolsonaristas Nunes Marques e André Mendonça, nove ministros do STF, no dia 2 de novembro, confirmaram a decisão do ministro Luis Barroso que determinou um Regime de Transição para os tribunais lidarem com as Ocupações coletivas que estão sob decisões judiciais de reintegração de posse.
Segundo o Regime de Transição determinado pelo STF, os tribunais estaduais e regionais federais devem criar imediatamente Comissões de Conflitos Fundiários para mediar os conflitos que envolvem todas as famílias em ocupações que estão sob decisão judicial que manda despejar quem está em ocupações.
“As Comissões devem ser permanentes e ter a presença permanente de órgãos públicos municipais, estaduais e federais de habitação, regularização fundiária, assistência social, saúde e de proteção de direitos de vulneráveis (ex.: conselho tutelar), além da Defensoria Pública e do Ministério Público. E devem ter como referência o modelo bem-sucedido adotado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná”, definiu o STF. Diz a decisão do STF: “As Comissões de Conflitos Fundiários devem fazer visitas técnicas, audiências de mediação e, principalmente, propor a estratégia de retomada da execução de decisões suspensas pela presente ação, de maneira gradual e escalonada”.
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As Comissões têm o “objetivo de mediar conflitos fundiários de natureza coletiva, rurais ou urbanos, de modo a evitar o uso da força pública no cumprimento de mandados de reintegração de posse ou de despejo e (r)estabelecer o diálogo entre as partes”.
Frise-se que a decisão do STF exclui o uso da força pública (de polícia) na execução do despejo. Ou seja, as Comissões de Conflitos fundiários dos Tribunais devem ser exitosas na construção de justa mediação de forma que garanta o direito à moradia. Logo, as Comissões não poderão ser “só proforma” e encaminhar despejo após sua atuação.
“As Comissões poderão atuar em qualquer fase do litígio, inclusive antes da instauração do processo judicial ou após o seu trânsito em julgado”, diz a decisão do STF. A decisão do STF enfatiza ainda: “Os juízes devem ponderar os impactos sociais da execução das reintegrações de posse e atuar, nos limites da sua jurisdição, a fim de evitar ao máximo a violação de direitos fundamentais.”
Decisão do STF é um passo importante, uma opção ética e responsável
Na decisão do STF o ministro Luis Barroso enfatiza: “Volto a registrar que a retomada das reintegrações de posse deve se dar de forma responsável, cautelosa e com respeito aos direitos fundamentais em jogo”, ou seja, apenas quando se comprovar realmente que é justa a decisão de reintegração de posse e após se arrumar alternativa digna, prévia e adequada de moradia, se faculta a realização de despejo. Despejo forçado, jamais, pois violenta os direitos fundamentais da pessoa humana assegurados na Constituição de 1988.
Alternativas dignas
Das alternativas dignas e prévias que abram espaço para despejo precisam estar excluídos como suficientes o cadastramento pelo poder público municipal e inclusão em fila de espera da moradia, o envio para abrigos públicos, por serem insalubres, inadequados e com rígidas restrições à liberdade das pessoas, e o pagamento de auxílio aluguel, (auxílio moradia), por ser migalha super contraditória: o valor é insuficiente, só uns 30% do que se precisa para alugar moradia digna; em muitos casos, as prefeituras param de pagar após alguns meses; hiperinflaciona os aluguéis na cidade; desresponsabiliza o prefeito, o governador e o presidente sobre a necessidade de implementar política pública de moradia efetiva para todo o povo, o que joga novamente as pessoas nas ruas ou as forçam a fazer outras ocupações.
Todos nós dos Movimentos Sociais e todo o povo das Ocupações seguiremos lutando.
O STF determinou respeito à dignidade humana e que em casos de decisões administrativas que exijam despejo de pessoas vulneráveis “não pode haver a separação das pessoas do núcleo familiar” em caso de oferecimento de abrigamento público ou outras moradias dignas.
O justo e constitucional é proibir definitivamente despejo de ocupações onde se comprove que a propriedade estava ociosa, abandonada e sem cumprir a função social, pois as ocupações coletivas por necessidade são uma forma de pressão constitucional assegurada por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em jurisprudência da lavra do ex-ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, para que se cumpra o direito à terra e à moradia, assegurado na Constituição.
Contudo, a decisão do STF é um passo importante, uma opção ética e responsável para lidar com a injustiça agrária e urbana que causa as ocupações e de como resolvê-las de forma justa, ética e pacífica. É imprescindível que o juízo de um conflito fundiário urbano ou rural verifique pontos como a existência de título válido por quem demanda a desocupação e o cumprimento da função social do imóvel por seu titular.
Minas Gerais
Em Minas Gerais, a decisão do STF, acima referida, na prática, exige o fortalecimento e a ampliação da autonomia da Mesa de Negociação do Governo de MG com as Ocupações e do CEJUSC (Central de Conciliação do TJMG) que deverão lidar de forma responsável socialmente com todos os conflitos urbanos e camponeses. Esperamos sensatez, espírito ético e republicano dos tribunais no cumprimento da decisão do STF.
Por isso, todos nós dos Movimentos Sociais e todo o povo das Ocupações seguiremos lutando. Enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito e o direito à moradia precisa ser garantido. Todo despejo é desumano e brutal, pois destrói moradias, histórias, sonhos e mata de muitas formas as pessoas.
Viva a luta por acesso à terra e à moradia!
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
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[1] Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares
[2] Organização de Direitos Humanos – www.terradedireitos.org.br
Edição: Elis Almeida