Em 2016, alegando o temor de um comportamento explosivo do nível de endividamento do governo federal, expresso pelo indicador dívida/PIB, o governo Temer enviou ao Congresso, onde foi aprovada, a Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como Lei do Teto de Gastos.
É preciso compreender a situação econômica que o país atravessava naquele momento.
Antecedentes
A primeira observação é relativa ao processo de “impeachment” da presidenta democraticamente eleita, Dilma Rousseff, sob o argumento de cometimento de crime de responsabilidade, as chamadas pedaladas fiscais.
Inocentada depois pela Justiça por falta de elementos legais, sabe-se que as ‘pedaladas’ sempre ocorreram nos governos anteriores, sob os olhares complacentes dos ministros do Tribunal de Contas da União que não se sentiram constrangidos em alterar a forma de interpretação de tais eventos, de última hora.
Dessa forma, tinha curso a trama revelada a partir do vazamento de gravações cujo conteúdo não deixava margem a dúvidas: "vamos tirar a Dilma e colocar o Michel para estancar a sangria. Num grande acordo, com o Supremo com tudo. E combinado com a imprensa".
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Afastada do cargo, assumiu o vice-presidente Temer para o cumprimento do restante do mandato, em ato nitidamente ilegítimo.
Do ponto de vista econômico, a política adotada no primeiro mandato de Dilma e responsabilizada pelo ressurgimento do fenômeno inflacionário desaguou em uma inflexão significativa na adoção de medidas econômicas, destinadas a agradar aos mercados e manter a inflação sob controle. Considerada um ‘estelionato eleitoral’ a política foi responsável pela elevação das taxas de juros, provocando um verdadeiro cavalo de pau na economia: queda do nível de atividade econômica, elevação do desemprego aliada à permanência da inflação.
A partir de 2015, a desaceleração econômica provocou a queda das receitas da União que, confrontadas com a elevação crescente das despesas resultou no surgimento de déficits primários.
Medida restritiva e concentradora de renda
Foi em meio a esse ambiente que o governo decidiu adotar a Lei do Teto de Gastos, uma medida fortemente restritiva à elevação das despesas orçamentárias, visando ao saneamento das contas públicas e à redução do grau de endividamento público.
Em seu texto, a Lei estipulava que as despesas de um ano só poderiam ser elevadas em montante correspondente à aplicação, aos gastos do ano anterior, do valor da inflação do período, medida pelo IPCA.
Na prática, isso representava o congelamento das despesas em termos reais, ou seja, sem inflação, o valor da despesa total seria idêntica à do ano anterior.
Além da tentativa de se estabelecer um controle sobre a dinâmica evolutiva do grau de endividamento e do comportamento da despesa, um argumento adotado pelo governo alegava que a lei obrigaria à definição das verdadeiras prioridades da sociedade. Assim, se a sociedade considerasse prioritária a elevação de gastos com a saúde, tais gastos poderiam ser aumentados acima da correção inflacionária, desde que compensados pela redução de gastos em outras funções administrativas.
A elevação das despesas até o ano de 2015 nada mais era que a inclusão dos direitos sociais, previstos na Constituição de 1988, no orçamento público.
Deve-se reconhecer que medida equivalente foi adotada por outros países, sempre restritas a curtíssimos períodos de tempo, como medidas emergenciais. Nunca, como a Emenda 95, com duração de 20 anos, sujeita à revisão passados 10 anos, e transformada em preceito constitucional, de alteração muito mais complexa e difícil.
A Lei do Teto exclui de seu alcance algumas despesas vultosas como o pagamento dos juros da dívida pública; as transferências constitucionais, obrigatórias, a Estados e Municípios; recursos destinados ao Fundeb, para Educação; e recursos aplicados em Empresas Estatais e os gastos eleitorais.
Excluídas tais rubricas, a Emenda congela valores das chamadas despesas primárias, que são a soma de despesas obrigatórias e despesas discricionárias. Dentre estas, como o próprio nome define, algumas são despesas mandatórias, compulsórias por imposição legal.
Incluem-se nessa classificação as despesas previdenciárias, destinadas ao pagamento de benefícios previdenciários e de assistência social - seguro desemprego e pensões -, correspondentes a 46% do total das chamadas despesas primárias do governo na previsão da Lei Orçamentária Anual – LOA enviada à Câmara para 2023.
Também obrigatórias são as despesas com salários para o pagamento de pessoal e encargos, equivalentes a 19,6% na LOA. Ainda obrigatórias são despesas relativas ao serviço da dívida.
Apenas 6,3% das despesas previstas para 2023 podem ser livremente alocadas pelo governo
O crescimento vegetativo e natural das despesas obrigatórias acaba representando parcela cada vez mais importante, tendo apresentado comportamento crescente desde 2015, quando representava cerca de 80% do total (restando 20% para despesas discricionárias) contra uma participação de 93,7% na previsão da LOA para 2023.
Isso significa que apenas 6,3% das despesas previstas para 2023 podem ser livremente alocadas pelo governo, de forma discricionária, conforme as prioridades da sociedade.
Assinala-se que nessas despesas discricionárias estão aquelas necessárias ao funcionamento regular das repartições públicas, como papel, canetas, cartuchos de impressão, até o prosaico cafezinho, estendendo-se ao reparo e construção de estradas, obras de recuperação de pavimentos e outras semelhantes.
E todas as previsões da LOA em valores monetários são baseadas em estimativas oficiais, consideradas otimistas, como a de crescimento de 2,5% do PIB para 2023, contra 0,4% esperados pelo mercado; inflação de 4,5%, contra a expectativa do mercado de 5,3% e a hipótese de um salário mínimo corrigido pelo índice inflacionário de 7,4%, o que eleva o valor do mínimo para R$ 1.302. Este valor do mínimo é que serve como base para as correções de benefícios pagos pela Previdência.
Folha de pagamentos do funcionalismo esta há mais de 3 anos sem qualquer reajuste
A folha de pagamentos do funcionalismo esta há mais de 3 anos sem qualquer reajuste o que, somado ao aumento de aposentadorias e demissões permitiu a realização de uma disfarçada ‘reforma administrativa’ visando a redução desses gastos, impossíveis de serem repetidos nos próximos anos.
Finalmente, e a título de crítica ao argumento do governo de que a lei do teto de gastos permitiria que as autênticas prioridades da sociedade fossem privilegiadas, deve ser assinalado que o congelamento do nível de despesa primária não leva em conta o natural crescimento demográfico do país.
Afinal, supondo inflação zero e o congelamento da despesa, fica claro, imediatamente, que o valor de despesa por habitante tende a declinar a cada ano, pelo simples crescimento do número de habitantes. O que representa a piora do nível de qualidade de serviços colocados à disposição e prestados a cada habitante, com impactos grandes para a parcela da população mais carente.
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Isso, em um país caracterizado pela desigualdade de oportunidades, propriedades e, consequentemente rendas, problema reconhecido e apontado por estudos do Banco Mundial como o maior entrave à formação de um mercado pujante, capaz de estimular as decisões de investimento e crescimento da economia.
Portanto a lei tem um caráter regressivo, concentrador de renda, na contramão de tudo que o país deve fazer para promover maior assistência à saúde, à educação e qualificação de toda a população, visando ampliar a produtividade de sua força de trabalho, com benefícios para o aumento de sua competitividade e dos ganhos de salários e lucros.
Lei veio para favorecer iniciativa privada
Deve-se discutir a própria justificativa para a proposição e aprovação da Emenda 95, a partir da informação de que o grau de endividamento, mensurado pela razão dívida/PIB, apresenta tendência declinante, tendo caído de 88% em 2020, em razão da pandemia, para 78%, atualmente, em razão da elevação do PIB.
Mais curiosa é a tentativa de se estabelecer qualquer nível de comparação entre esses percentuais e aqueles de economias de maior credibilidade (seja lá o que isso possa significar!) como a japonesa, a americana, até a italiana, cujos índices superam os 100%.
Este último dado nos leva a questionar a motivação por trás do apoio à lei pelos mercados (leia-se financeiros). Para isso, assumimos a hipótese de que, congelado o gasto público e impedido de gastar por longo período, o governo não tem os meios necessários para prestar os serviços públicos essenciais à sua população. Situação que criaria um amplo mercado para a atuação de iniciativas privadas, sempre ávidas a ampliar o espaço de criação e circulação de mercadorias, no circuito de valorização do capital.
Paulo Cesar M. Feitosa é professor de Economia
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida