Discurso da “responsabilidade fiscal” é usado para garantir uma agenda de austeridade
Ultimamente, só se fala sobre quem será o próximo ministro da Fazenda de Lula. Os nomes cotados vão desde Guido Mantega, que já atuou como ministro no governo Lula e Dilma, e Fernando Haddad, grande nome do partido, até Pérsio Arida e André Lara Resende, que idealizaram o Plano Real.
No entanto, a preocupação da mídia comercial – que se arrependeu de ter criado o monstro do bolsonarismo, passou a eleição inteira chorando as pitangas da falta de uma terceira via e agora dispara ao PT todas as críticas ressentidas de uma direita “democrática” que respira por aparelhos – é agradar ao “deus mercado”.
Apesar de grande parte dos meios de comunicação se referirem ao mercado como se fosse uma entidade que precisa o tempo todo ser adulada para não se voltar contra o próprio país, ele nada mais é do que um aglomerado de grandes players do mercado financeiro que movimentam uma quantidade massiva de ativos e recursos. Pequenos agentes podem participar do mercado financeiro, mas seus rendimentos dependem exclusivamente do que ditarem os grandes players, uma vez que os últimos conseguem manipular o movimento do mercado financeiro com a especulação.
O problema é que o “deus mercado” é implacável na defesa de seus próprios interesses. Foi só o futuro presidente verbalizar que a prioridade de seu governo será incluir a questão social no orçamento, que a Bolsa de São Paulo fechou em queda de 3,35% e o dólar subiu 4,14%, em uma resposta do mercado financeiro que buscava medir forças enquanto demonstrava sua insatisfação.
Discurso usado para a agenda de austeridade
Tudo isso sob o mantra da preocupação com a “responsabilidade fiscal”. Se estão tão preocupados com a responsabilidade fiscal, então por que não utilizamos a meta de superávit nominal no lugar da de superávit primário, que exclui de seu cálculo o gasto com juros?
O discurso da “responsabilidade fiscal” foi instrumentalizado para garantir o cumprimento de uma agenda de austeridade, que até agora só conseguiu promover fome, desemprego, inflação e um crescimento medíocre. Isso porque o regime fiscal brasileiro é pró-cíclico, o cumprimento de uma agenda recessiva produz resultados recessivos: o corte de gastos reduz o crescimento, que desencadeia uma queda na arrecadação, que requer maior corte de gastos... em um círculo vicioso.
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A epítome do compromisso dos governos anteriores com tal agenda é a Emenda Constitucional do Teto de Gastos. Foi aprovado em lei o congelamento do orçamento público, corrigido pela inflação, durante 20 anos. Levando em conta a tendência de crescimento da população e do produto da economia, o que se processa de fato é a redução da despesa primária do PIB no longo prazo, isto é, o corte do orçamento dedicado à provisão de serviços públicos para a sociedade.
Em outras palavras, depois de cortar em despesas discricionárias, a necessidade de manter o teto exige o corte das despesas obrigatórias, como os benefícios sociais, o pagamento de servidores e o investimento na manutenção dos serviços públicos*. Não à toa, a proposta de Paulo Guedes para 2023 incluía um plano para burlar o direito constitucional de correção do salário mínimo pela inflação observada.
O objetivo dessa emenda é impedir o crescimento da dívida pública em relação ao PIB. No entanto, essa é tão mal concebida que, em seu texto, não existe um mecanismo para amortecer choques externos ou lidar com crises econômicas.
Nos outros países onde existem medidas similares, as regras não são nem de longe tão rígidas: na Holanda, o teto vale por um período de quatro anos, nos quais é permitido gastar quando comprovada a disponibilidade de recursos. Na Finlândia, o teto também vale por quatro anos, com flexibilidade em algumas despesas federais. Na Suécia, existe um teto de três anos, sem limites para alterações. Na União Europeia, a meta fiscal limita o aumento das despesas em relação ao PIB de cada país, excluindo os gastos com benefícios para os desempregados. Estamos falando de países desenvolvidos, nos quais a seguridade social está mais consolidada do que aqui.
Austeridade não é problema de contabilidade
Alguns economistas, a mídia comercial e o atual governo tratam a austeridade como se fosse a solução de um problema técnico de contabilidade fiscal. No entanto, essa é uma questão fundamentalmente política de luta pela distribuição da renda, permeada pelos interesses de setores da sociedade que ganham com isso.
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O grande capital ganhou com o leilão de refinarias da Petrobrás e de blocos do pré-sal, do mesmo modo que ganha com o sucateamento – e pretende ganhar ainda mais com a destruição e a privatização – de serviços básicos, como o SUS e as escolas e universidades públicas. Quando existe um sistema de saúde pública eficiente, não há necessidade de contratar um plano de saúde. Quando existe o acesso universal a universidades públicas de excelência, não há motivo para arcar com pesadas mensalidades.
Trocando em miúdos: se não houver orçamento para as políticas públicas que garantem os direitos sociais previstos na Constituição – educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados –, o governo está se eximindo da sua responsabilidade com os próprios cidadãos.
Já estamos vendo a repercussão da política de austeridade na vida dos brasileiros: falta de recursos para as refeições da merenda escolar; escassez de profissionais de saúde nos hospitais públicos; desabastecimento de medicamentos da Farmácia Popular; queda no percentual de pretos e pardos prestando Enem; corte drástico no orçamento direcionado às famílias com renda menor que três salários mínimos, que eram atendidas pelo programa de habitação social Casa Verde e Amarela; ampliação da população em situação de rua; crescimento da insegurança alimentar.
Diante disso, fica o questionamento: precisamos de um ministro da Fazenda que governe para o mercado ou para as pessoas?
* Para discussões mais aprofundadas a respeito de orçamento público e política econômica no Brasil, recomendo o livro “Economia pós-pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico”, organizado por Esther Dweck, Pedro Rossi e Ana Luíza Matos de Oliveira.
Isadora Pelegrini é economista, doutoranda no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG e membra do Instituto Economias e Planejamento.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa