Makota Valdina nos lembra que “o povo negro não descende de escravos. Descende, sim, de seres humanos que foram escravizados injustamente durante o processo de colonização portuguesa nas terras africanas e brasileiras”.
Esta fala de uma sacerdotisa do Candomblé Angola, mulher, negra, já idosa, baiana, filha de Cavungo (correspondente a Obaluayê da cultura yorubá) reflete, evidentemente, a grandeza de alma e exuberância da vida de uma senhora, militante, capaz de exprimir humanidade, afeto e entendimento profundo à favor do povo negro.
Os estudos historiográficos, antropológicos e sociológicos trazem evidências de que as pessoas negras, durante o processo de colonização portuguesa no continente africano e na "terra brasilis", eram tratadas pelos europeus como seres “sem alma”, “sem rei”, “sem lei”, “sem religião” (cristã, católica, diga-se de passagem).
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Isto é, animais selvagens, desprovidos de humanidade, incivilizados. Acontecimento que justificou o tratamento desumano conferido a tais populações ao longo de séculos de escravidão. Pessoas negras foram brutalmente arrancadas de suas terras no continente africano para servirem a um tipo de trabalho desprovido de qualquer forma de dignidade.
Contudo, diferentemente do que predomina no discurso comum, antes da colonização, as etnias africanas como Banto e Iorubá em seus territórios de origem, cultivavam a natureza, a vida em família, possuía uma maneira própria de organização política e social, culinária, medicina própria, metalurgia, estratégias de caça para a sobrevivência comunitária e de guerra contra os inimigos, festividades, cantos, instrumentos musicais, danças, vestuário, conhecimentos transmitidos de gerações a gerações, artefatos e muito mais.
Se todos esses elementos já estavam lá, cabe-nos perguntar, por conseguinte, qual é a verdadeira história, identidade e cultura afro-brasileira?
Os povos negros trazidos à força para o Brasil, trouxeram dentro de si, de suas memórias, de seus corações e mentes, cantigas, receitas culinárias, um modo próprio de ser, fazer e de se comportar na vida.
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Toda essa cultura, identidade e memória vindas do continente africano resistiu dentro dessas pessoas, mantiveram-se e reinventaram-se no Brasil: os seus conhecimentos, os seus valores, os seus modos influenciaram decisivamente a cultura brasileira de tal forma que é impossível, atualmente, pensar o Brasil sem a cultura afrobrasileira.
Ela resiste nas suas mais variadas expressões como a capoeira, o lundu, o candomblé, o samba, o carnaval, o chorinho, o maracatu, o tambor de creoula, os quilombos, o tipo de sociabilidade presente nas favelas, a farofa e a feijoada, as moquecas de peixes, o acarajé, o bumba meu boi, os anjinhos barrocos negros de Aleijadinho em Ouro Preto, as congadas, moçambiques e as folias de reis, o coletivismo, e muito mais.
Tudo isso que enche os nossos olhos, corações e mentes de orgulho e que atrai turistas de todo o mundo, resistiu bravamente durante o período escravocrata do nosso país. A todas as perversidades daquele sistema.
Nesse sentido, o Candomblé "é um milagre". Talvez, o maior de todos porque foi capaz de guardar em si uma outra forma de relacionamento com a fé do povo negro, danças, músicas, culinária, um tipo de convivência matriarcal, festividades, os orixás - divindades negras no “novo mundo” -, o sentido da nossa ancestralidade (história, memória, identidade), vestuário, relacionamento com a natureza (fauna, flora, cosmos), brincadeiras, sorrisos, afeto, abraços.
Ródinei Páscoa Amélio é professor de Sociologia
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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa