É motivo de esperança e alegria tantas pessoas que repelem o autoritarismo
“Deus, pátria e família”. Surpreendi-me, a princípio, quando vi esse adesivo da extrema direita no automóvel de um conhecido, já que presenciei, certa vez, ele contando, satisfeito, suas peripécias ao enganar a esposa para sair com amantes e garotas de programa. “Como esse sujeito se diz defensor da família?”, pensei.
Depois raciocinei melhor: claro que é defensor da família. Da família tradicional, machista, patriarcal, e sobretudo hipócrita, já que é monogâmica no discurso legal e religioso, mas, na prática, aceita-se socialmente que o marido tenha relações extraconjugais – mas não a esposa.
Os valores fundamentais dessa família tradicional são desigualdade e hierarquia: mando e obediência conjugados. Sem isso, acreditam seus defensores, o mundo mergulhará na desordem. Trágico equívoco. O caos, a violência, a imprevisibilidade da vida, a desordem, enfim, é causada pelo excesso de desigualdade, não pela falta.
Muitas pessoas, especialmente numa sociedade como a brasileira, gestada na opressão, têm como valores mais caros o mando e a obediência, inclusive alguns que mais obedecem do que mandam – previsível que seja assim, o que é digno de nota, e de esperança e alegria, é a existência, ontem e hoje, de tantos que repelem esse autoritarismo.
Se a família, então, tem sido, em boa medida, uma instituição autoritária, devemos ser contra ela? Absolutamente não!
Pessoas são seres individuais e coletivos ao mesmo tempo. Sem a coletividade, o que seria de um ser humano? E uma das instituições coletivas mais duradouras e importantes é a família. Ao longo de milhares de anos, seres humanos já receberam muito das famílias em que nasceram: amor, carinho, proteção, orientação, apoio em toda a existência.
Outros, porém, tiveram as vidas seriamente prejudicadas ou mesmo destruídas pelas famílias em que tiveram o mau destino de nascer – pois eram famílias despóticas, cruéis, autoritárias, e na raiz dessas perversões estava o machismo patriarcal, desigualitário.
Família em transformação
O modelo ideal desse machismo patriarcal supõe que a figura do pai, “chefe” da família, não só tem o poder e dever da autoridade incontestável sobre sua família (esposa, filhos, agregados), como exerce essa autoridade, em última análise, no interesse de seus dominados. Assim, mesmo quando pune, castiga, até com violência, os de sua família, ele o faz “para o bem”, como se diz, desses. Afinal, o pai, necessariamente, ama sua família, como poderia ser diferente? Não seria preciso, portanto, interferência da sociedade, do Estado, para coibir violências, o próprio “chefe de família” se colocaria limites.
Óbvio que nem sempre esse modelo ideal funciona.
A família, contudo, tem passado, nos últimos anos, por transformações que, se não eliminaram totalmente, ao menos atenuaram esse autoritarismo patriarcal. Um novo modelo, em que a mulher não é mais submetida ao homem, e parceiros podem ser do mesmo sexo, e em que as crianças, se necessitam algum grau de autoridade, não se sujeitam a autoritarismo, já que este é uma corrupção que torna a autoridade pervertida, podre, estragada pelo excesso e falta de limites.
Sob esse novo modelo, ainda em implantação e disputa, o lado positivo, amoroso, da família se exponencia. Não somos contra a família. Somos contra a família machista e patriarcal!
Deus fraterno, pátria solidária
Da mesma forma, não somos contra Deus. Absolutamente não! Apenas defendemos a liberdade de cada um cultuar o seu Deus, ou deuses, a sua religião, e mesmo de não cultuar qualquer Deus ou religião. A tolerância religiosa, o respeito às opções religiosas de cada pessoa, foi uma conquista da cidadania e uma das bases sobre a qual a democracia tem sido construída no Ocidente.
Alguns optam por uma divindade machista e patriarcal, sob o ideal já descrito aqui: um deus colérico, exigente e punitivo, mas também compassivo e misericordioso com suas “ovelhas” – ideal nem sempre condizente com a realidade. Temos de respeitar essa opção, mesmo preferindo uma divindade mais ao feitio do novo testamento, por exemplo, próxima dos humildes, da alegria, do perdão, da fraternidade universal. Mas que nos respeitem também, e não tentem nos impor os valores autoritários dessa visão religiosa.
A pátria? Amamos o Brasil, nossa pátria – embora fosse desejável que esta, como dizia o poeta, se tornasse cada vez mais fratria.
Difícil a fraternidade, entretanto, com tanta desigualdade, tanto individualismo, com a liberdade entendida como o direito de fazer absolutamente tudo, de não levar em conta a liberdade e o direito dos outros – a liberdade-privilégio, e não a liberdade como condição geral da coletividade.
Cultuando essa liberdade-privilégio, os extremistas de direita, os fundamentalistas, os intolerantes, abraçam um patriotismo raso, tolo e, no limite, falso. Fácil demais ser “patriota”, com aspas bem merecidas, porque se veste de verde amarelo, de camisa da seleção de futebol, posta nas redes sociais a bandeirinha do Brasil, canta o hino etc. Claro que devemos respeitar esses símbolos: hino, bandeira, cores nacionais, mas ser nacionalista, de verdade, vai muito além.
Supõe compreender seu próprio país, valorizar sua história, e, no caso de habitantes de um país periférico como o nosso, supõe um delicado equilíbrio para não cair, por um lado, na exaltação tola dos países centrais e na desconsideração injusta com nossa nação, nem, por outro lado e como reação a essa mentalidade colonizada, numa auto exaltação ingênua.
No caso de políticos, e mais especificamente de presidentes da república, ser nacionalista é defender, realmente, no plano internacional, os interesses de seu país – em vez de ser capacho de outros presidentes e de bater continência para a bandeira norte-americana, como Bolsonaro.
Podemos e devemos nos orgulhar de ser brasileiros, sem chauvinismo, sem desconsiderar outras nações. Não queremos, porém, um país patrimonialista, em que a elite se veja como dona do Estado, do orçamento público, dos destinos da nação. Pátria sim, patrimonialismo não!
Deus, pátria e família? Sim! Mas de outro jeito.
Rubens Goyatá Campante é doutor em Sociologia pela UFMG e pesquisador do CERBRAS/UFMG
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
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Edição: Elis Almeida