Equilibrar o coletivo e o individual seria ótimo para a sociedade e o futebol
“É impossível entender o Brasil sem olhar para o futebol”, garantiu o belo editorial do Brasil de Fato publicado no início da Copa do Mundo de 2022, que ressaltou a capacidade aglutinadora e o potencial de abrandar tensões políticas e ideológicas do futebol no Brasil, sem fechar os olhos para os seus problemas.
A eliminação do time brasileiro nas quartas de final, contudo, talvez tenha impedido que se completasse a retomada de símbolos nacionais, como a camisa da seleção brasileira, sequestrados pelo patriotismo fácil e falso da extrema direita.
A derrota, sentida por muitos como uma quase tragédia, um baque no orgulho nacional, traz sempre as suas “explicações”.
Primeiro, a busca dos “culpados”, às vezes exagerada e injusta. Como lembra Tostão, em texto publicado na Folha de São Paulo logo após o Brasil perder, “jogadores e técnico podem ser criticados, desde que não sejam transformados em vilões”. Afinal, mesmo que seja um jargão, é válida a afirmação de que partidas parelhas como Brasil e Croácia resolvem-se no detalhe. E foi por pequenos erros e por detalhes que foi eliminado o time brasileiro, o qual, como diz Tostão, se não é excelente, é um bom time.
Individualismo e instabilidade
Há, porém, além dessa imprevisibilidade dos detalhes, inerente ao futebol, outras razões, mais estruturais, que trabalham, há tempos, contra o sucesso das seleções brasileiras: o excesso de individualismo e a instabilidade emocional.
Tostão falou sobre o primeiro ao comentar que “uma grande equipe precisa unir o domínio da bola e do jogo no meio-campo, com muita troca de passes, símbolo do jogo coletivo, como faz a Croácia, com a agressividade e os dribles dos meias e atacantes brasileiros, símbolos do talento individual”. Ou seja, é necessário um equilíbrio entre coletividade e individualidade no futebol. E mais adiante, ele completa: “o Brasil não tem, há décadas, um craque meio-campista, como Modric, que atua de uma intermediária a outra. Não tem por que, nos últimos tempos, se preocupou em formar muito mais jogadores hábeis, velozes e de ataque do que construtores e pensadores do jogo”.
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Valoriza-se, portanto, a individualidade em detrimento da coletividade.
Talvez a razão de o futebol ser o esporte mais popular do mundo é o fato de espelhar, como nenhum outro, as contradições e casualidades da vida e a necessidade de equilíbrio das duas dimensões fundamentais do ser humano: a individual e a coletiva. Assim, o futebol de um país reflete, em certa medida, a cultura de seu povo. O desprezo pela coletividade, que tem prejudicado o futebol brasileiro, também afeta nosso país.
Para exemplificar a importância do controle do meio-campo, símbolo do jogo coletivo, Tostão assegura: “a principal razão do 7 a 1 foi o total domínio do meio campo pelos alemães”.
Sem contestar o mestre, acrescente-se outro fator: a perda do controle emocional. Naquele jogo, até a metade do primeiro tempo, nem tudo estava perdido. A Alemanha ganhava de 1 X 0, fizera o primeiro gol aos 11 minutos numa falha primária de marcação da nossa defesa, que deixara Klose completamente livre para completar o escanteio.
Mas após tomarem o segundo gol, aos 23 minutos, os jogadores brasileiros, disputando a semifinal de uma Copa em casa, com o peso do orgulho nacional sobre eles, perderam totalmente o rumo, ficaram paralisados, irreconhecíveis. E o time tomou mais 3 gols nos 6 minutos seguintes.
O que explica isso senão um desmoronamento mental coletivo, uma espécie de “apagão” psicológico geral? E eram jogadores experientes, a maioria jogando em grandes clubes, especialmente no disputadíssimo futebol europeu. O fator emocional pesou ali. Como já tinha pesado quando Ronaldo teve uma crise nervosa antes da final contra a França em 1998, abalando todo o grupo e contribuindo para o desempenho ruim do time na partida.
Em uma entrevista ao portal DW Brasil pouco antes desta Copa, Juninho Pernambucano, craque nos gramados e nos comentários como Tostão, falou do problema da instabilidade emocional do jogador brasileiro. “O jogador é um ser humano (...) a saúde mental do atleta é muito abalada durante a carreira. Ele precisa de acompanhamento de profissionais da psicologia que entendam o esporte. O europeu não cai nessa, porque ele teve uma formação melhor que a nossa”2.
Transferência de responsabilidade
Estrelas de um esporte de alto rendimento e competitividade, que movimenta enormes somas de dinheiro, atletas profissionais da elite do futebol contam, hoje, com toda sorte de apoio, médicos, fisioterapeutas, preparadores físicos e nutricionistas, dispõem dos melhores materiais esportivos, são acompanhados por empresários, assessorados por consultores de marketing e de imagem pública. No Brasil, porém, o suporte psicológico é negligenciado.
E o que entra no vácuo da deficiência de formação educacional na infância e adolescência para atletas que, em sua maioria, vêm de famílias pobres e da carência de apoio psicológico especializado quando estes se tornam profissionais?
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Entra, como lembra Tostão, a transferência de responsabilidade para os “super técnicos”, dos quais se esperam soluções mágicas para ganhar jogos e campeonatos. Os quais, por outro lado, ao menor sinal de revés, quando o time deixa de ganhar por 3 ou 4 partidas seguidas, são enxovalhados e demitidos.
Entram as ridículas palestras motivacionais, os manuais de autoajuda, coaches e que tais. Entra, finalmente, o apoio de religiosos, especialmente pastores evangélicos. Segundo Juninho, “existem pastores que se aproximam dos jogadores, frequentam a concentração, e cumprem um papel que o treinador não faz, que o Estado não faz para o pobre. Ele dá o conforto psicológico (...) ele abraça, faz o trabalho psicológico.”3
O excesso de individualismo e a instabilidade emocional se relacionam. É uma individualidade não só excessiva, mas mal colocada, pois encaminhada de forma muito emotiva e pouco racional – reflexo do que Sérgio Buarque de Holanda chamava de “o homem cordial” brasileiro, isto é, de um tipo de personalidade que se guia bem mais por impulsividade emocional que por reflexões racionais e que é mal preparada para a vida coletiva4.
Não se trata de desqualificar as emoções humanas, de querer sufocá-las – algo impossível e mesmo contraproducente. Trata-se de temperar as pulsões emocionais com a maturidade e a ponderação, e, assim, de equilibrar o coletivo e o individual.
Seria ótimo para a sociedade e o futebol brasileiros.
Rubens Goyatá Campante é doutor em Sociologia pela UFMG e pesquisador do CERBRAS/UFMG
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
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Notas
1. A superioridade dessa formação explica-se pelas melhores condições sociais e educacionais, no geral, dos europeus. Mesmo assim, muitos jogadores europeus tiveram trajetórias difíceis antes de se profissionalizarem. Citado por Tostão, Modric, por exemplo, viu, aos 6 anos de idade, seu avô ser morto com um tiro na cabeça em frente de casa, na guerra civil entre sérvios e croatas. Sua família teve a casa queimada, como todas da aldeia em que moravam, e, durante 6 anos, viveram em abrigos de refugiados, em precárias condições. Quando se apresentou ao Dínamo de Zagreb, aos 16 anos, Modric era tão franzino e tão tímido que duvidaram se poderia se tornar jogador profissional. No Brasil, além da deficiência educacional, os jogadores têm outras dificuldades. Quase todos vêm de famílias pobres, de um povo culturalmente sujeito, em nosso país, ao que Darcy Ribeiro chamava de ninguendade – uma condição que soma-se à pobreza uma carga pesada de preconceito, de falta de reconhecimento e valorização dos pobres por parte das elites e das classes médias. De “ninguéns”, alguns poucos jogadores transformam-se em astros. Uma mudança difícil, às vezes, para a cabeça de garotos que só fizeram uma coisa na vida: jogar futebol. Juninho comenta, de forma direta e certeira, a respeito: “quando você começa a jogar em um futebol de alto nível, a ter mais dinheiro, a sua vida muda (...) você faz novas amizades e conhece pessoas de outra classe, que só te aceitam por você ter uma certa fama. No fundo, elas te consideram ‘um merda’ e pobre do mesmo jeito (...) Quando você começa a se aproximar da elite, dizem para nós ‘você não conseguiu, então o outro tem de conseguir’. Não é assim, nós somos exceções (...) Neymar pensa assim: ‘eu não fiz mal a ninguém e cheguei aonde cheguei por causa do meu talento, do meu trabalho’. Ele tem direito de pensar dessa forma, mas ele se esquece do principal: que ele foi pobre. (...) A partir do momento que você passa a viver no meio da elite, eles dominam teu pensamento”
2. Não é de hoje que Tostão alerta sobre o problema. Em artigo publicado na Folha de São Paulo, em agosto de 2018,, intitulado “Psicologia do esporte evoluiu em todo o mundo, menos no futebol brasileiro”, ele comenta que dirigentes e treinadores brasileiros desprezam o trabalho psicológico, como se fosse algo apenas subjetivo, pantanoso, pouco prático, e ainda acusa um “preconceito machista contra a presença das mulheres psicólogas no futebol masculino”. Para Tostão, os jogadores brasileiros, nas decisões, “possuem menos preparo emocional que os europeus. Isso é evidente, desde o início de algumas partidas, pelo intenso nervosismo, pela falta de lucidez nas escolhas e por bisonhos erros técnicos. A ansiedade é benéfica, pois aumenta a concentração e a vibração dos atletas. Porém, quando excessiva, inibe e atrapalha”.
3. Juninho não critica a fé evangélica: “a minha formação não é evangélica, mas eu acredito em Deus e respeito todas as religiões igualmente”. Descreve, contudo, a relação entre essa fé e o bolsonarismo – correlação que, se não é, obviamente, uma regra plena, é uma tendência conhecida na sociedade brasileira em geral. Segundo ele: “a partir do momento em que um jovem cheio de pressão e dúvidas recebe aquele acolhimento, através da Bíblia, o pastor ganhou o atleta e a família dele. O empresário fica junto, porque não quer perder aquele atleta. A maioria dos jogadores bolsonaristas fervorosos que conheço estão sob influência de pastores. Esse apoio não começa na política, mas termina com a política”.
4. Ao se referir a “cordial”, Holanda não queria dizer, necessariamente, simpatia, amabilidade, gentileza. Cordial vem de cordis, coração, e o coração, sede figurativa das emoções humanas, tanto ama quanto odeia, é capaz tanto dos mais nobres quanto dos mais repulsivos sentimentos.
Edição: Elis Almeida