Trata-se de, pelo menos, envergonhar, conter e punir o golpismo dentro das forças armadas
Como fica a avaliação de conjuntura política para o governo Lula e para os movimentos populares? O cenário pós-eleitoral ainda é, para trabalhadores e trabalhadoras organizados, de defensiva estratégica no médio-prazo, pois nosso campo ainda se recupera da ofensiva liberal-conservadora desde 2016. No entanto, como o Movimento Brasil Popular avalia, o momento mais imediato é de ofensiva tática. A vitória de Lula abre espaço para retomarmos as lutas de trabalhadoras e trabalhadores por meio do Poder Executivo federal.
Nesse contexto de ofensiva tática e defensiva estratégica, havia um campo que parecia fechado para o avanço das pautas progressistas: a reforma das forças policiais e das forças armadas brasileiras. (Um parêntese: essa luta deveria ser, em termos puramente idealistas, uma pauta liberal, mas os liberais dos nossos trópicos têm as ideias um pouco fora do lugar, como dizia Roberto Schwarz).
A violação cotidiana dos direitos mais elementares nas favelas e no campo já deveria ser suficiente para justificar as reformas. A entrada (explícita e intensificada) dos militares e das polícias na política institucional a partir do governo Temer tornou a pauta urgente. Contudo, nosso campo parecia não dispor de forças para pressionar essa dimensão. A “direita democrática”, como gostam de se referir o jornalismo empresarial aos Davi Alcolumbre do nosso país, não permitiria algo do tipo.
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As forças armadas brasileiras estão completamente imunes de qualquer punição por suas ações, desde a revolta das forças armadas contra a tentativa da presidenta Dilma Rousseff de institucionalizar o mínimo de memória histórica com a Comissão Nacional da Verdade. Passaram impunes pela articulação do golpe de 2016, pelo golpismo do Comandante do Exército Eduardo Villas Bôas durante o julgamento do presidente Lula em 2018 e pelos crimes de Eduardo Pazuello durante a pandemia (para ficarmos apenas com alguns exemplos salientes).
Novo cenário
A tentativa fracassada de golpe de Estado do dia 8 de janeiro muda essa conjuntura. A conivência (para dizer o mínimo) das forças policiais do Distrito Federal e as falhas (de novo, para dizer o mínimo) do Batalhão da Guarda Presidencial (BGP) foram evidentes. A resistência do exército brasileiro para remover acampamentos golpistas de suas portas escancara seu apoio tácito à quebra da ordem institucional no país.
Diante dessa situação, o presidente Lula conseguiu unificar forças com os três poderes federais e com os 27 governadores de estados – no que pese a relutância de aliados do ex-presidente Bolsonaro, como Romeu Zema – para dar uma resposta à altura. O apoio internacional veio de todos os cantos: Estados Unidos, Rússia, China e União Europeia expressaram imediatamente apoio ao governo Lula e às instituições democráticas brasileiras. Os movimentos populares deram uma demonstração de força com protestos cheios convocados com menos de 24 horas.
Essa união sem precedentes abre a possibilidade para fazermos reformas nas forças armadas do país. Além da identificação e punição de responsáveis por falhas na segurança no dia 8 e pela conivência com acampamentos golpistas mesmo diante de ordens judiciais para remoção, a nova conjuntura abre espaço para explorarmos uma série de pautas apontadas por especialistas em defesa e demandadas pelo campo popular: aumentar a transparência das forças armadas pela aplicação homogênea da Lei de acesso à informação, limitar a jurisdição da justiça militar, impor controle civil sobre a educação de oficiais, começar a punir oficiais por posições políticas, como prevê a lei. As possibilidades são várias.
Sem anistia
De maneira geral, trata-se de, pelo menos, envergonhar, conter e punir o golpismo dentro das forças policiais e das forças armadas do país. Sem anistia para criminosos e sem leniência com oficiais da ativa. Para isso, é importante que o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, reveja sua posição, se tiver interesse em se manter no cargo.
Diante da dificuldade de proceder com o mínimo de normalidade democrática na transição na área de defesa, Múcio foi colocado no cargo justamente para apaziguar uma área bloqueada para o novo governo. Assim, Lula poderia se ocupar de suas propostas de campanha sem ter que desarmar bombas deixadas pelo oficialato. Discordemos ou não da necessidade dessa linha de ação, era um plano. Mas o plano falhou.
As forças armadas não conseguiriam conter seu fã clube. As garantias de Múcio sobre os acampamentos golpistas horas antes dos eventos na praça dos três poderes foram absolutamente infundadas. Com a mudança de conjuntura, é obrigação do ministro usar de sua suposta personalidade amigável e facilidade de circulação no Planalto, tão incensadas na grande imprensa, para mostrar serviço para os três poderes da República e para o povo brasileiro. Se não for capaz, que peça seu chapéu e deixe o espaço para outra pessoa mais apropriada para a tarefa.
Há urgência em encaminhar a situação militar do Brasil. A boa vontade internacional pode mudar e os restos do bolsonarismo vão se reorganizar. Estender a intervenção federal no distrito federal significa manter a pauta do Congresso Nacional bloqueada para emendas constitucionais.
A CPI do golpe de Estado deverá ocupar a atenção da imprensa e dos parlamentares. Se o executivo não tomar a dianteira, perderá a iniciativa para um congresso de viés conservador. Não podemos correr o risco de desperdiçar uma chance única de acabar ou pelo menos diminuir a tutela militar sobre a democracia brasileira. Lula deu os sinais corretos ao endurecer o discurso na coletiva de imprensa em Araraquara e na reunião com governadores. Agora é implementar.
Pedro Faria é economista e doutor em história. É pesquisador vinculado ao Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG, ao Instituto Economias e Planejamento e militante do Movimento Brasil Popular.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa