Passados quase dois anos da celebração do acordo de R$ 37,6 bilhões entre o governo de Minas e a Vale S.A, cujo objetivo seria a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Córrego do Feijão, em 2019, atingidos da bacia do Rio Paraopeba e da represa de Três Marias criticam a destinação dada ao recurso.
Sem participação popular na definição dos termos do pacto, movimentos e moradores das comunidades impactadas avaliam que o dinheiro vem sendo utilizado por Romeu Zema (Novo) em iniciativas que não interessam aos atingidos.
Muito criticado por ambientalistas, as obras do Rodoanel Metropolitano, proposta pelo governador, receberão mais de R$ 3 bilhões vindos do acordo. Para Fernanda Portes, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), além de não contribuir com a reparação, a proposta tende a ampliar os danos aos atingidos.
“É uma mega obra, de interesse das empresas e do Zema, que não repara os atingidos, ameaça fontes de água na região metropolitana e em comunidades remanescentes quilombolas. Além disso, o traçado passa por municípios já atingidos pelo rompimento, como Betim e Brumadinho, só aumentando os danos. Ou seja, mais atingidos na região", avalia.
Entregue à iniciativa privada em dezembro do ano passado, o metrô de Belo Horizonte também vai receber parte da verba do acordo. Ao todo, o governo de Minas passará R$ 440 milhões para a expansão das linhas da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) Minas Gerais, leiloada por apenas R$ 26 milhões, mesmo sendo avaliada em R$ 900 milhões pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Além disso, em 2021, Zema apresentou à Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) um Projeto de Lei que destinou às cidades mineiras R$ 1,5 bilhões do recurso do acordo. Porém, na proposta, o repasse seria feito às prefeituras por meio de convênio com o estado. A proposta foi rechaçada pelos deputados mineiros, que conseguiram garantir que o repasse fosse direto, sem a interferência do governo.
Reais objetivos do acordo
Marcelo Barbosa, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), acredita que, ainda que na narrativa criada sobre o acordo se fale bastante em reparação, os reais objetivos da Vale e de Zema sempre foram outros.
Para ele, a mineradora buscava dar segurança jurídica aos seus investidores, sobretudo estrangeiros, e, ao mesmo tempo, o governador viu no acordo uma oportunidade eleitoreira.
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“Não dava para os investidores conviverem com incertezas sobre como e quando a mineradora seria punida pelo Estado brasileiro. Da parte da Vale, é daí que nasce o acordo. Já para Zema, o objetivo era se promover eleitoralmente, por isso ele usou muito essa questão durante a campanha”, argumenta Marcelo.
“Realidade é cruel”, afirma atingida
Enquanto isso, os moradores das comunidades atingidas sentem na pele as consequências da falta de reparação. A pescadora e artesã atingida Eliana Marques Barros conta que é testemunha de uma “realidade cruel”. Segundo ela, depois do crime que contaminou o rio, famílias ribeirinhas passaram a conviver com a fome e a falta de água.
“Animais de pequeno e grande porte estão morrendo. O meio ambiente está adoecido, assim como nós, atingidos. A violência aumentou muito e hoje não temos mais segurança de viver como vivíamos antes do crime bárbaro, premeditado e repetitivo da Vale”, relata Eliana.
A pescadora ainda afirma que os atingidos têm dificuldade de acessar até mesmo o valor do acordo destinado às indenizações e auxílios individuais.
“A empresa criminosa entrou no território e o dividiu. Para alguns, ela não negou o auxílio, mas a grande maioria não teve acesso ao direito. Além disso, até hoje a Vale não pagou a indenização”, denuncia.
Reparação ou propaganda?
A dura realidade relatada pelas famílias não é a mesma transmitida pela Vale e pelo governo de Minas nos programas de televisão e rádio. Para Fernanda, do MAB, a reparação que está em curso é a “reparação da propaganda”.
“Ao mesmo tempo em que nega direitos, [a Vale] não reconhece os atingidos e terceiriza a responsabilidade para outras executoras. Faz muita propaganda de obras e programas sociais, sem reparar os danos individuais, coletivos e ambientais”, avalia.
Anexos estão em disputa
Do total de quase R$ 40 bilhões, o anexo 1.3 do acordo garante R$ 2,5 bilhões para projetos de políticas públicas nos municípios ao longo da bacia do Paraopeba e da represa de Três Marias, e o anexo 1.1 destina R$ 3 bilhões para projetos voltados às comunidades atingidas.
Além do baixo valor, os atingidos relatam que para participarem do processo de definição da destinação do recurso são enfrentados uma série de desafios.
“Para a garantia do recurso do anexo 1.3 para obra de interesses dos atingidos, por exemplo, tivemos de enfrentar propostas que iriam beneficiar empresários. Chegou a ir para votação, graças a Deus não passou. Também enfrentamos segundas intenções de políticos”, relata Francisco Hélio dos Santos, membro da Comissão de Atingidos de São José do Buriti, distrito de Felixlândia.
Na votação eletrônica, pela qual os atingidos definiram os projetos a serem executados, Francisco Hélio afirma que houve até mesmo suspeita de fraude.
“Mais de 20 pessoas quando foram votar constavam que já tinham votado. Eu chamei a Polícia Militar e fiz um boletim de ocorrência, para caso houvesse algum problema”, conta.
O outro lado
Procurado pela reportagem para comentar sobre o tema, o governo de Minas enviou uma nota, por meio da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag). No texto, é reforçado que as instituições de Justiça também participaram da construção do acordo de reparação aos danos provocados pelo rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, e que o Termo de Reparação tem como “o foco principal as comunidades e as pessoas atingidas”.
Quanto à utilização de parte do recurso para projetos, como a construção do Rodoanel Metropolitano, o governo de Minas afirma que as ações executadas por ele “vêm sendo acompanhadas pelos órgãos e mecanismos de controle do poder público”.
Edição: Larissa Costa