Quem tentar dar tapa na mesa antes da hora só vai ajudar acabar de quebrá-la
Ainda em dezembro, em uma reunião da equipe de transição, o presidente Lula pediu que seu futuro governo fosse cobrado: “se vocês não cobram, a gente pensa que está acertando”, disse o presidente. Desde então, a fala do presidente se tornou uma espécie de passe-livre para a reclamação em discussões sobre o governo Lula: basta apresentá-lo e está liberado o acesso ao buffet de reclamações contra o governo, self-service sem balança.
O passe-livre da reclamação tem sido usado principalmente pelo campo liberal que aderiu - em diversos casos, apenas no último momento - à frente ampla liderada pelo presidente Lula. Depois de perder o carro da terceira via e perderem o acesso ao banco do motorista no carro da frente ampla, o comentariado da imprensa empresarial tem viajado na carona enquanto reclama da direção.
É justamente quando temos um governo aberto a demandas que temos que apresentá-las
Reclamam até de ministros indicados por partidos de direita para os quais eles fizeram campanha durante a eleição. A atitude do campo liberal é esperada e não nos interessa muito discuti-la. Esses vão continuar reclamando, não importa o que aconteça.
Nos interessa mais discutir a relação dos movimentos sociais com o governo e como nosso campo pode (e deve) usar o “direito de cobrar”. O presidente Lula apresentou às urnas uma proposta de governo de frente ampla e de reconstrução nacional. Se, em condições de normalidade, a conciliação com os interesses do capital e das elites políticas, judiciárias e militares já se fazia necessária, dada a força política e eleitoral do campo da esquerda, a situação atual, corretamente admitida pelo programa de Lula, exigirá ainda mais negociações e concessões.
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Essa realidade torna ainda mais urgente que os movimentos pressionem o governo, mas também exige extremo cuidado na aplicação de pressão.
A primeira pergunta é “por que devemos cobrar o governo”? Temos um governo do campo popular em uma correlação de forças delicada em que parte da direita e do capital oscilam entre apoia-lo ou degenerar (mais uma vez) em neofascismo - onde, aliás, foi parar boa parte dos capitalistas e da antiga “direita democrática”. Não parece boa situação para cobrarmos o governo.
No entanto, é justamente quando temos um governo aberto a demandas que temos que apresentá-las. Governos de direita não dão ouvidos aos movimentos organizados e o apelo a instrumentos de pressão como greves e protestos oferece poucas promessas de resultado. São necessários longos períodos de organização para enfrentar jornadas de greves, protestos, marchas e mobilizações que demorarão a levar o governo à mesa de negociação.
O pedido de cobrança não foi direcionado à revista Veja ou à Fiesp. Desses, a cobrança é tão certa quanto será injusta
Mais do que abertura, um governo de esquerda em uma democracia burguesa que sabe o que faz, deseja cobrança por parte dos movimentos sociais organizados. Quando se propõe a sentar na mesa com o capital e seus representantes políticos, um governo de centro esquerda precisa de pressão nas ruas para poder apontar para a janela e dizer “estão vendo aquele povo nervoso lá embaixo? Se vocês não cederem nada, não vamos ter paz”.
É por isso que Lula pede cobrança. O pedido de cobrança não foi direcionado à revista Veja ou à Fiesp. Desses, a cobrança é tão certa quanto será injusta.
Ainda assim, se o presidente Lula quer que pressionemos o governo para dar gás nas disputas políticas, temos que tomar muito cuidado com a operação. A primeira parte do cuidado é estarmos organizados: as cobranças devem ser feitas por meio dos movimentos. Quem tem acesso aos veículos de comunicação ou tem grande audiência nas redes sociais tem que tomar cuidado especial: existe um risco concreto de uma demanda legítima ser capturada por veículos de comunicação empresarial ou formadores de opinião do campo liberal ou da direita. Uma demanda legítima pode se tornar, assim, apenas mais um foco de incêndio para um governo popular.
Um exemplo concreto: durante o período de transição, a imprensa empresarial aderiu aos chamados por mais diversidade na formação do primeiro escalão do governo. Desnecessário dizer, essa é uma pauta urgente e de primeira importância. No entanto, assim que o governo entregou resultados, constituindo o ministério mais diverso da nova república (ainda que, claro, com muito espaço para melhorar), o campo liberal se desinteressou pelo assunto.
Um governo de esquerda que sabe o que faz, deseja cobrança por parte dos movimentos sociais organizados
Quem está organizado continua promovendo a pauta por meio de coletivos como a Rede de Economistas Pretos e Pardos (REPP) e Elas no Orçamento, ambos lutando pela diversidade no campo da formulação da política econômica.
Cobrar por meio dos movimentos organizados também é importante para não ficar de fora. O início de um governo do campo popular é momento de construção de pontes. Na situação atual, depois da destruição feita pela extrema-direita, talvez leve algum tempo até que toda a estrutura do Estado esteja de pé e funcionando. Por isso, colocar a boca no trombone para seus milhares de seguidores nas redes sociais seja apenas queimar o governo.
O mais importante agora é procurar saber como é possível ajudar na reconstrução: antes de sentar na mesa, vamos ter que consertá-la; quem estiver lá lixando o tablado ou aprumando os pés, já vai estar na beirada da mesa quando ela estiver pronta. Quem tentar dar tapa na mesa antes da hora só vai ajudar acabar de quebrá-la.
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O ponto mais importante, no entanto, é a maneira da cobrança. Um governo de frente ampla em uma correlação de forças que compele à conciliação será necessariamente um governo com políticas e pessoas antagônicas ao desejado pelos movimentos. Mais importante, os limites impostos ao governo sempre virão do lado de lá da disputa. Ainda que o presidente Lula seja, como gosta de lembrar o comentarista Françuel Cruz, “tricampeão mundial de conciliação”, é a força do campo oposto que impõe limites.
Por isso, é importante modular a mensagem para que a cobrança recaia sobre o lado de lá: se um ministério cedido para a composição de base parlamentar não está entregando, a crítica deve ir para o partido do lado de lá. Se um partido da direita não entrega votos em votação, mesmo diante de concessões, cobremos os parlamentares deles, não os nossos. Se a imprensa empresarial abusa da divulgação de dados - às vezes com fake news, como foi feito na comparação espúria entre os gastos de cartão corporativo suspeitos da presidência de Bolsonaro e os gastos de todo o governo Lula - temos que denunciar a imprensa, não reclamar da comunicação do governo. Se as empresas de aplicativos exploram os entregadores e motoristas, que façamos greve contra elas, não contra o governo.
Quem tem grande audiência nas redes sociais tem que tomar cuidado especial: uma demanda legítima pode ser capturada por veículos de comunicação empresarial
Em todos esses exemplos, o governo popular é aliado dos movimentos organizados e o que vemos não é falha, é o limite de nossas forças. Ao invés de criticar nossas forças, temos que pressionar as forças opostas ao campo popular.
Então, sinto dizer, presidente Lula, não pretendo passar quatro anos te cobrando. Ou pelo menos não pretendo jogar gasolina na fogueira que a imprensa empresarial, o partido militar e demais aliados da coalizão conservadora estão armando desde a confirmação do resultado das urnas. Para bom entendedor - e entendedor melhor que o presidente Lula não há - meia palavra vinda dos movimentos e direcionada aos nossos adversários basta.
Vamos gastar nossas palavras cobrando da turma que nunca é cobrada: os intelectuais liberais e a imprensa empresarial que incensaram Paulo Guedes, os parlamentares do “centrão” (ou “arenão”) que mantiveram Bolsonaro no cargo por 4 anos enquanto saqueavam o país, os generais que desestabilizam nossa constituição. Quem constrói o campo popular por dentro do governo entenderá a mensagem.
Pedro Faria é economista e doutor em história. É pesquisador vinculado ao Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG, ao Instituto Economias e Planejamento e militante do Movimento Brasil Popular.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Rafaella Dotta