De tão corriqueiras, não se sabe se as reformas vêm para remodelar a estrutura ou para tapar buracos
Se no âmbito fiscal a metáfora doméstica é geralmente usada de modo pouco convincente, no âmbito da governança, ela é um pouco mais precisa: governo velho sai, governo novo entra – a casa, obviamente, fica – e, a depender do contraste entre os inquilinos, passa por significativas reformas. Para fazê-las com êxito, uma boa relação com os vizinhos (Legislativo e Judiciário) pode ser necessária, mas nada como um bom planejamento antes da mudança.
Nesse sentido, o novo governo Lula começou antes mesmo de tomar posse. Os mais de 900 membros da equipe de transição cuidaram de fazer reconhecimento do terreno e dimensionar as áreas prioritárias. Na economia, a PEC da Transição (PEC 32/2022) aprovou quase R$ 200 milhões acima do Teto de Gastos (R$ 175 milhões para o Bolsa Família e R$ 22 milhões para ampliação de investimentos).
Além disso, o julgamento do STF pela inconstitucionalidade do orçamento secreto devolveu ao Executivo a discricionariedade na alocação das verbas para políticas públicas, cifra prevista para R$ 23 bilhões no orçamento de 2023.
Reformar, reformar e reformar
Há de se convir que o debate econômico do Brasil deixou de ser, nos últimos anos, sobre investimento público, crescimento e menos ainda sobre desenvolvimento, voltando-se quase que exclusivamente para as ditas reformas.
No entanto, existem pelo menos duas maneiras de interpretá-las. Pelo viés estruturalista, elas estariam deliberadamente voltadas para transformar a sociedade por meio do crescimento da produção e da produtividade sob a liderança da indústria. Já na visão institucionalista, elas se manifestam mais frequentemente em privatizações, abertura comercial e flexibilização do mercado de trabalho, com o objetivo de reduzir o custo de produção na economia. Sob essa perspectiva, o desenvolvimento econômico ocorre sem qualquer intervenção do Estado, desde que este atue para garantir o bom funcionamento do mercado.
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As últimas reformas econômicas no país tiveram viés institucionalista. Lula, ainda em seu primeiro mandato, precisava sinalizar positivamente a favor do mercado e aprovou mudanças importantes na Previdência dos servidores públicos federais, com o fim da integralidade e da paridade (EC 41/2003 e 47/2005). Dilma aprovou a Funpresp, que estabeleceu um teto igual ao do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) para os novos funcionários públicos, além da Lei 13.135/2015, que limitou a duração das pensões por morte para cônjuges jovens no RGPS, e a Lei 13.183/2015, que aumentou os valores das aposentadorias por tempo de contribuição do RGPS.
Temer, ainda interino, identificava em seu manifesto “Uma ponte para o futuro” um “esgotamento fiscal do Estado”. Seu governo ficou marcado pela implementação do Teto de Gastos e da reforma trabalhista (leis 13.429 e 13.467, de 2017), que introduziram respectivamente a terceirização irrestrita e a aplicação do tempo parcial, contrato de trabalho intermitente, entre outros. Temer ainda tentou emplacar uma ampla reforma da Previdência, que só foi aprovada sob o governo Bolsonaro, em 2019, de forma bem menos vultosa.
Predominantemente paramétricas, nenhuma das reformas foi capaz de alterar a estrutura econômica e trazer benefícios concretos para o país. Pelo contrário, as mais drásticas reformas de Temer mostraram-se pouco efetivas – e até dificultosas – para a economia brasileira. O teto de gastos até serviu para frear a escalada da dívida pública, mas passou por diversos remendos e hoje está fadado a ser completamente redesenhado.
E a reforma trabalhista mostrou-se falaciosa por não entregar o emprego prometido e ainda aprofundar a vulnerabilidade do trabalhador brasileiro.
Só mais uma reforma
A bola da vez, então, é a reforma tributária, discutida e engavetada em quase todos os governos deste século. Lula, que após as tentativas frustradas de 2003 e 2008 mostrou-se desacreditado com tal proposta no Brasil, tem diante do seu novo governo motivos para estar mais otimista:
1. Conforme ressaltado, as reformas tornaram-se o novo primeiro ato no roteiro de presidentes empossados;
2. Ao longo de sua primeira passagem, criou-se um desgaste com o Congresso após a conturbada aprovação da reforma da Previdência citada anteriormente, relação que o novo governo busca estreitar;
3. Há um maior consenso acerca da regressividade e confusão da tributação brasileira, que superaria a natural indisposição de estados e municípios, além de diferentes setores econômicos do país, em discutir mudanças tributárias.
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A força-tarefa do ministro Fernando Haddad busca revisar a tributação da renda e da produção com o objetivo de torná-las mais simples (eliminando distorções federativas, por exemplo) e progressivas (quem ganha mais, paga mais – e aqui vale uma extensão, pois hoje, no Brasil, pessoas com rendimento mensal acima de R$ 4.664,68 estão, para a Receita Federal, entre os mais ricos da população).
Para isso deve-se pensar na inclusão da tributação de lucros e dividendos, bem como concentrar esforços para reduzir o problema da evasão e elisão fiscal. Atualmente, tramitam no Congresso as PECs 45 e 110 que buscam, de maneira geral, uma ampla reforma da tributação do consumo.
Apesar das tempestades, a casa brasileira permanece em pé
De tão corriqueiras, não se sabe se as reformas vêm para remodelar a estrutura ou para tapar buracos. Curioso é o caso do inquilino que mesmo desempregado insiste em reformas para se estabilizar.
“Desmetaforando”, é evidente que estrutura tributária brasileira precisa de urgente atualização a nível paramétrico (a exemplo do Imposto de Renda da Pessoa Física, as alíquotas precisam se ajustar de forma mais coerente à renda da população). Sua simplificação – considerando os princípios da eficiência e equidade – seria também muito bem-vinda.
Embora as experiências recentes levantem certo ceticismo quanto ao poder propulsivo das reformas, o novo governo aposta que uma mudança ousada e bem-feita na esfera tributária possa contribuir para geração de emprego e renda, pegando carona no exitoso “passo-zero” da manutenção da renda básica e da retomada do controle do orçamento pelo Executivo.
Guilherme Silva Cardoso é doutorando do Programa de Economia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar-UFMG) e diretor de pesquisa do Instituto Economias e Planejamento. Atualmente, encontra-se em período de doutorado-sanduíche (Capes – PrInt UFMG) no Centre of Policy Studies (Victoria University), Austrália.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa