É fundamental planejamento de estado com participação popular
A crise humanitária vivenciada pelo povo Yanomami representa a desfiguração de uma ideia de país. Não é forçoso afirmar que essa condição se conecta com a distopia provocada pela proporção de mortes alcançadas na pandemia de covid-19, e, em certo sentido, com o rompimento das barragens de minérios em Mariana e Brumadinho, que também atingiram duramente as populações locais.
A indignação e o luto provocado por tais tragédias apontam para uma energia cívica importante à recomposição de um sentimento de formação nacional, aglutinador de esperanças em um futuro comum, definido por lutas compartilhadas que buscam a reafirmação da vida.
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Mariana, Brumadinho, pandemia e genocídio Yanomamis
Em todos esses casos está presente uma dramática ameaça à saúde pública. Tal vulnerabilidade é, não apenas, sinônimo de uma democracia debilitada, mas encarna a fragilização de um sentido nacional e popular na estrutura de decisões que moldam o Estado brasileiro. Contra essa moção destrutiva, se encontra ao abrigo do SUS os indícios desse necessário esforço de encontro do Brasil consigo mesmo.
Em Mariana e Brumadinho, as trabalhadoras e trabalhadores do SUS foram um dos primeiros braços do Estado brasileiro a prestar assistência às vítimas. Já durante a pandemia o SUS assumiu uma legitimidade pública sem precedentes por ser a principal política pública presente no cotidiano dos milhões de brasileiros.
A demanda de recursos para o SUS passou a ser taxada como ‘demanda populista’ e ‘irresponsabilidade fiscal’
Agora, frente ao genocídio premeditado contra os brasileiros Yanomami é a Força Nacional do SUS que está em Boa Vista (RO) com mais de 33 mil profissionais de saúde estruturando as ações de Vigilância em Saúde e Ambiente, de Atenção Especializada e de Atenção Primária à Saúde.
É importante identificar que em todas essas tragédias se faz presente uma forma de organização da economia, fundada moralmente no desprezo e no ódio aos pobres, aos trabalhadores e trabalhadoras, de confronto e desrespeito para com o direito das mulheres, de afirmação estrutural do racismo e da xenofobia.
Projeto econômico excludente
Desde o Golpe contra a presidenta Dilma Roussef, em 2016, essa cultura de maximização de ganhos vem reconfigurando a natureza do Estado e ampliando terreno na disputa pela identidade e valores da formação brasileira. Essa condição deixa claro que todo projeto econômico é, além de uma disputa pelo Estado, uma busca pelo domínio da cultura política.
Para se viabilizar, essa arquitetura de poder precisou demonizar fundamentos importantes à afirmação dos direitos do povo brasileiro. Por meio de uma guerra incessante de comunicação essa nova agenda econômica procurou formar o seguinte juízo público:
I) O valor da soberania nacional foi substituído pelo avatar da economia aberta para o mundo;
II) Empresas públicas, como o foi um dia a Vale do Rio Doce, deveriam ser privatizadas para elevar o país à competitividade exigida pela modernização internacional;
III) O planejamento público de Estado passou a ser demonizado com os discursos de eficiência e custo-efetividade supostamente inerentes ao gerencialismo privado;
IV) A luta coletiva pelos direitos do trabalho foi denunciada como pauta sindical corporativista, a ser substituída pelo mérito individual no mercado.
Nessa agenda capitalista, o orçamento público – a arrecadação do Estado – deveria, em primeiríssimo lugar, atender às expectativas dos ganhos financeiros. Por esse caminho, a demanda de recursos para o SUS passou a ser taxada como ‘demanda populista’ e ‘irresponsabilidade fiscal’, uma irracionalidade ante as expectativas de uma economia globalmente financeirizada.
Atendendo a este propósito, há poucas semanas o jornal Folha de São Paulo taxou como “PEC da Gastança” a iniciativa do governo Lula em expandir o orçamento público para atender aos beneficiários do Bolsa Família, combater a fome e planejar ações emergenciais nas áreas da educação e saúde pública.
Para superar os crimes contra o povo brasileiro e seus interesses genuínos de viver em um país que não lhes seja hostil, será importante fortalecer o SUS. Nessa caminhada, é fundamental conjugar o valor do planejamento de estado com a ampla participação popular.
A superação do ódio fascista e da aculturação de mercado exige uma gramática popular configurada pelo encontro do Brasil indigenista de Darcy Ribeiro com a cultura antirracista de Manoel Quirino a Conceição Evaristo, da unificação da práxis laboral feminista de Laudelina de Santos Mello à resistência reflexiva de Carolina de Jesus.
Esse sentimento de formação nacional, abrigado no coração do Estado brasileiro, tem na cultura pública e universal do SUS os vestígios da sua existência.
Ronaldo Teodoro é cientista político e professor do Instituto de Medicina Social/UERJ.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
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Edição: Elis Almeida