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Artigo | Quando retornar é mais do que atravessar o Atlântico

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"Foi aqui que eu senti a profundidade da sabedoria dos nossos ancestrais, que ao idealizar a África, nos permitiu construir um mundo positivo a respeito de nós" - Foto: Iris Pacheco
Quantas Agnes atravessaram o Atlântico na diáspora?

"Meu corpo vazou a fronteira e rompeu o véu do tempo
Em fluxo reverso revi o trajeto dos meus
Vi a dor escancarada que dilacera a carne
Ouvi os gritos de minha tataravó
Senti o cheiro e a náusea
Fui desfazendo as correntes
Nadei contra as marés e me deparei com o porto da
dolorosa partida
Desfiz todas as voltas em torno da árvore do esquecimento
Matei a desmemória com a força das minhas recordações
O retorno sempre desejado
Estive fora do lugar por uma vida inteira.
Descruzei o Atlântico e desatei o nó infame que me
afastava de mim."

(Carlandréia Ribeiro - Descruzei o Atlântico)

Demorei um pouco para elaborar sobre a experiência do retorno ao continente mãe, porque senti que o nó infame do fluxo reverso ainda não havia se desfeito completamente. Dentro de mim havia uma ânsia em partilhar tudo com os meus que ficaram do outro lado do Atlântico, mas ao mesmo tempo senti que precisava experienciar o máximo possível a imensa diversidade da África e só assim materializar a partilha. Afinal, eu sou porque somos.

Estou em uma pequena parte do continente, que é a Zâmbia, esse país da África Austral, um tanto pequeno se comparado a alguns outros, mas gigante em sua capacidade de existir e re-existir. Por aqui são as cotidianidades que me lembram que descruzar o Atlântico nunca foi uma viagem do "eu" sozinha. Como bem nos ensinou Makota Valdina: “O povo negro não descende de escravos. Descende, sim, de seres humanos que foram escravizados injustamente durante o processo de colonização portuguesa nas terras africanas e brasileiras”.


"Pequeno se comparado há alguns outros, mas gigante em sua capacidade de existir e re-existir" / Foto: Iris Pacheco

Entre as tantas coisas que a diáspora forçada nos legou, está a busca por alinhamento do nosso coração, corpo e mente. Retornar é se reconhecer no outro, é saber que a nossa boca fala, mas o nosso corpo pode dizer tanto quanto.

No trânsito das encruzilhadas, pedi licença para neste chão pisar, aos poucos fui traçando minhas percepções, desde a forma de comer a nshima (bolinho cozido feito com farinha de milho branco), os jeitos de se comportar na vida, as canções, até a liberdade consciente do corpo.

Mas, aqui quero falar mesmo é de Tempo, um dos principais aprendizados tem sido sobre essa entidade magnifica, grandiosa e ao mesmo tempo tão singela.

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Sempre ouvi nos templos das religiões de matriz africana que o Tempo é rei, pai dos povos Bantu, e que é no passo dele que encontramos nosso espaço no mundo. Aqui esse movimento de descolonização dos nossos passos que outrora foram violentamente acelerados tem me possibilitado compreender outras formas de viver e ler o mundo.

Uma das primeiras vezes que Tempo falou comigo foi pela força da experiência de Agnes Zulu. Estava na varanda de sua casa, cujo espaço também acolhia uma sala de aula da Campanha de Alfabetização em sua comunidade, eu não falava o seu idioma local e nem ela o inglês. Interagimos pouco, mas eu senti que não poderia fazer nenhum registro sem sua autorização. Tive o auxílio de um colega que traduziu a minha solicitação de eternizar aquele momento em uma fotografia, e recebi o seu sorriso como consentimento. Naquele momento, me perguntei quantas Agnes atravessaram o Atlântico na diáspora? Com certeza foram muitas.


Paisagem de Zâmbia / Foto: Iris Pacheco

Pensei também que nem todas as histórias podem ser contadas em palavras, às vezes, precisamos sentir. E foi aqui que eu senti a profundidade da sabedoria dos nossos ancestrais, que ao idealizar a África, nos permitiu construir um mundo positivo a respeito de nós. Nos permitiu aprender a não sermos coadjuvantes de nossa própria história.

Desde então, nas encruzilhadas da vida por aqui tenho gerado mais perguntas do que respostas e sentir tem sido meu ebó de existência. Retornar é desfazer todas as voltas em torno da árvore do esquecimento, matar a desmemória com as recordações que nos arrancaram à base do açoite. Retornar é deixar de se sentir “fora do lugar por uma vida inteira”.

Iris Pacheco é jornalista, especialista em Teologia das Religiões Afro-brasileiras e especialista em Estudos Latino-americanos. É comunicadora popular, militante do MST e internacionalista na Zâmbia.

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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

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Edição: Elis Almeida