O momento de violência que estamos vivendo, hoje, na sociedade brasileira, apresenta características que merecem quatro destaques: (1) a visão de Deus; (2) a repetição da violência histórico-social; (3) a questão econômico-ecológica e (4) a questão psíquica.
A visão de Deus
A busca da experiência de Deus é sustentada pelo estado numinoso da transcendência. Essa vivência pode consolar ou perturbar o sujeito. Deus é o objeto de desejo mais extraordinário ou perigoso de que dispõe a pessoa humana. Há três objetos de desejo de magnitude equivalente às desmedidas aspirações de totalidade humana: a luxúria enquanto envolvimento sexual, o fetiche do dinheiro ou das mercadorias que dele emanam e, finalmente, a fixação de cargos e funções no exercício do poder. Mas nenhum deles se compara à experiência de Deus. A relação com o desejo na experiência com o sagrado envolve uma alta carga de erotismo, afeto e rituais litúrgicos. Na perspectiva espiritual, segundo Bento XVI, “Deus é amor: Eros (erótico), Filia (amor), Ágape (ritual/ celebrativo).”
Na história humana, em nome de Deus, registramos infinitas guerras, atrocidades e violências. Contraditoriamente, em diferentes séculos, a experiência de Deus iluminou infinitos projetos de libertação do povo de Deus. Há místicos loucos e loucos místicos. Os primeiros são profundamente humanos e veem Deus como consolo de suas angústias, separações, doenças e da finitude – a morte. Já o segundo grupo nega sua incompletude e busca Deus como prótese de seu vazio. Assim, Deus é experimentado como algo fascinante, absoluto, todo poderoso ou sádico castigador. A mente humana regida por um forte SUPEREGO sente-se amparada por esse “Criador”. Tais sujeitos adoram mitos, leis, regras e ideais absolutos como compensação do EU enfraquecido.
Cada um entra no seu próprio mundo de ideias falsas e preconceituosas
Uma primeira demanda de Deus geralmente é atravessada na busca por ídolos, na identificação a ícones midiáticos ou a líderes rígidos e pedantescos idealizados. Essas solicitações sempre levam a escolhas amorosas distorcidas. As identificações do tipo prótese são comuns entre crianças e adolescentes, com caráter despótico e altamente fragilizado. Ora, é impossível eliminar o fato de que há relação direta entre os aspectos psíquicos e as escolhas espirituais do sujeito. A imaturidade afetiva coincide com a espiritualidade imatura.
Uma segunda caraterística da relação com Deus vem sendo utilizada pelos atuais movimentos pré- eleitorais e pós-eleitorais no Brasil. Trata-se da idolatria, enquanto paixão excessiva entre Deus e o líder político de massa. A proximidade da figura deísta com a figura humana é muito perigosa e libidinalmente excitante. Ela arrebata e proporciona sensação de fascínio dos cinco sentidos corpóreos. Promete-se sedutoramente a experiência do absoluto, afugentando a angústia frente às perdas e à incompletude humana.
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O terceiro traço da busca de Deus relaciona-se com o grave pecado contra o 2º mandamento: “Não tomar seu santo nome em vão”. O vocábulo “vão” nos faz lembrar de supérfluo, inútil, arrogante, vaidoso, orgulhoso, presunçoso. Líderes vaidosos desejam ardentemente serem iguais a Deus.
Esses três aspectos resumem Deus no seguinte triângulo: primeiro, Deus é visto como objeto de desejo absoluto para apaziguar as angústias e as situações de perda; segundo, ocorre a associação de Deus à figura mítica da pessoa, condensada na idolatria transferencial do ídolo de massas e, terceiro, desenvolve-se a extrema vaidade de “tomar o santo nome de Deus em vão”. Trata-se de um Deus onipotente, exigente, violento e despótico. Nesse triângulo, configura-se uma experiência religiosa de extrema violência, com fortes traços de perseguição. Essa prática de vida está bem distante do Jesus misericordioso.
A busca de Deus acima descrita não é teológica nem pertence à tradicional espiritualidade dos místicos. As pessoas que procuram tais práticas de vida, provavelmente, estão emocionalmente comprometidas e demandam extremos cuidados. Quando os sujeitos não possuem meios afetivos adequados e estratégias de enfrentamento de viverem sua fé, acabam não só ardendo (apaixonando-se), mas também queimando-se (enlouquecendo) de Deus. Moisés chamou a atenção para isso no Livro do Êxodo: “a sarça ardia no fogo, mas não se consumia”. Trata-se, portanto, de arder, não de queimar.
Os adeptos dessa prática religiosa podem ser fieis católicos, evangélicos, de outras religiões e ateus. Carecem de uma catequese evangelizadora. Ao escolherem o vínculo fascinante de Deus exacerbam todos os sentidos do ser humano transbordando-os em emoções. Ao se sentirem anestesiados declinam o pensamento, a razão e a capacidade de simbolização. Os atos religiosos fundamentalistas têm um alcance muito rápido, muito fácil e por caminhos sempre desviantes, por isso, acabam congregando cada vez mais pessoas. O simples fato de se terem transformado em massa torna os indivíduos possuidores de uma espécie de alma coletiva. A equação não fecha: quanto mais os grupos sociais sofrem (autoagredidos pelas perdas como a derrota do grande líder e seus ideais, no caso específico) mais eles produzem maneiras eróticas agressivas pelo efeito mimético de espelhamento, o que cega completamente sua capacidade cognitiva.
A repetição da violência histórico-social
Ao analisar, atualmente, a sociedade brasileira, desde uma perspectiva antropológica, histórico-social, percebe-se uma crise de intolerância com relação a temas vitais do convívio humano. Essa crise está se repetindo compulsivamente em diferentes grupos extremistas, abrindo fendas no convívio social da família, da Igreja, da escola, dos meios de comunicação, de grupos político-partidários e do Estado de Direito.
A história revela que a atuação desses grupos não é nova. Eles se constituem e agem por meio de conteúdos recalcados, não resolvidos, que retornam como sintomas consistentes e importantes. Cabe interrogar: o que revela o interior do sujeito quando ele assume formas eróticas de ódio contra o pobre, o morador de rua, o faminto, a mulher, o negro, o indígena, o imigrante, os grupos LGBTQIA+, as agremiações religiosas e os partidos políticos libertários? A diferença é utilizada para solidificar ainda mais as partes consideradas intactas, narcisistas, perfeitas e puras? Ou é experimentada simplesmente para acirrar antagonismos e promover de forma imaginária as marcas de um grupo “religioso”, “militante” e “devoto”, dirigido por lideranças autoritárias, paranoicas e messiânicas?
A vida consciente do sujeito representa apenas uma pequenina parte do psiquismo
Ora, toda diferença quebra a uniformidade vaidosa e a igualdade narcisista da pessoa e de seus grupos sociais. A diferença estilhaça a manutenção e a conservação onipotente e inaugura o caos e o novo. Será que as diferenças poderiam ser vividas e toleradas por participantes de grupos que têm a firme convicção de que não sabem tudo, não têm todo o poder e não dispõem de todo o prestígio do mundo? Até que ponto as pessoas têm a convicção de que são humanas, limitadas e potentes apenas parcialmente?
Os conflitos contemporâneos no Brasil são resíduos de questões sociais que se arrastam há séculos sob a forma de ocupação de territórios de povos originários, modelos de colonização escravocrata e racista, disputas de poder e de bens religiosos, recusa de imigrantes, domínio de gênero – lutas de classe entre uma minoria que detém bens, em detrimento de uma maioria despossuída. Essa dívida clama aos céus até os dias de hoje, em Nietzsche, o eterno retorno, em Freud, o retorno do recalcado). Nesse antagonismo, observa-se o jogo social em que se criam os superiores imprescindíveis e os inferiores descartáveis. Em tese, entre humanos, há antagonismo entre as grandes e pequenas diferenças narcísicas e de poder que atravessam grupos e organizações. Por essa razão, a soberba é o valor antidemocrático por excelência. Assim, a megalomania e mitomania estão presentes entre nós há séculos, sustentando a política da indiferença e da intolerância.
Há um fenômeno, nas organizações e instituições sociais, que poderíamos denominar narcisismo das pequenas diferenças. Segundo Freud, trata-se de uma dificuldade dos membros de um grupo de aceitar a diferença de outros. Esse sentimento de intolerância geralmente cria a categoria de “inimigo”, do tipo perseguição - o indivíduo utiliza, preferencialmente, a projeção como defesa e transforma a interação com o outro em uma luta entre perseguido e perseguidor. Na vida social, é importante tomar posição com relação às ideias e às posições controvertidas de outras pessoas e de situações adversas. Entretanto, por vezes, essa luta se desloca para uma disputa destrutiva, pessoal, ou surge entre grupos como algo vinculado à ferida narcísica.
Essas polêmicas têm crescido exponencialmente com as redes sociais por meio das fake news cujo resultado é potencializar ao máximo a cólera entre antagonistas, sob a forma de um ódio erotizado. Por imposição de um dos lados pode-se correr o risco de sacrificar, em nome de uma identidade narcisista, a própria razão de ser da vida social e das vivências grupais. É preciso compreender essa reprodução histórica reestruturando-a politicamente, exorcizando o fantasma e a ideia de inimigo, a fim de diminuir a intensidade das lutas internas desagregadoras e antropofágicas.
Orgulho das pequenas diferenças produz ódio e cria “inimigos” em potencial
As diferenças narcísicas incrementam a vaidade em vários sentidos, entre muitos grupos e com diferentes enfoques: etário, racial, religioso, partidário, territorial/geográfico, socioeconômico e de gênero. O orgulho das pequenas diferenças produz ódio heteroagressivo e autoagressivo entre humanos, criando “inimigos” em potencial. Essas rivalidades geram boicotes, competições destrutivas, agressões físicas e virtuais. Em outras ocasiões, para se defender, os pares fecham-se entre si, imaginando rivalidades fantasiosas. Tais atitudes tornam mais difícil a comunicação entre os membros dos grupos de família, vizinhos de bairros e prédios, colegas de trabalho, moradores das paróquias, militantes de partidos políticos, ativistas de movimentos sociais ou de redes virtuais.
Cada um entra no seu próprio mundo de ideias falsas e preconceituosas. Diríamos, resumidamente, que a comunicação do grupo fica “coagulada”: as informações são transmitidas somente ao par com quem se mantém alguma cumplicidade amorosa. A circulação das ideias, da criatividade e da produção, portanto, permanece sonegada por determinado subgrupo. Esse tipo de atitude acaba alienando algum elemento (ou partes de um grupo) que, mais tarde, vai se sentir rejeitado e, posteriormente, excluído do convívio social.
Coincidentemente ou não, o Brasil e vários países do Ocidente vêm convivendo com esse fenômeno de intolerância ensandecida, despótica, racista, sexista, religiosa, etária, econômica, de gênero, contra imigrantes, movimentos ecológicos e defensores dos direitos humanos. A Alemanha viveu essa experiência na época do nazismo – regime político narcisista que exaltava a descendência ariana, considerada pura, e propunha destruir ciganos, judeus, negros, comunistas, democratas, pensadores estrangeiros e pessoas de diferentes opções sexuais.
A excessiva vaidade transforma sujeitos e grupos societários em elementos paranoicos, exageradamente desconfiados e portadores de traços de perseguição. Qualquer diferença é interpretada como intenção de ataque hostil aos que se consideram semelhantes. O sectarismo moral, religioso, político e dogmático é o esconderijo dos paranoicos, que se armam com atitudes violentas – físicas e virtuais – contra as diferenças. Os sujeitos com traços paranoicos, geralmente ensimesmados (cheios de si), mascaram sua vaidade e ambições secretas com ideias conservadoras, de aparente rigor moral e falsamente escrupulosas. Esses indivíduos têm sérias dificuldades para expressar suas dores psíquicas e, assim, tornam-se verdadeiros torturadores de si mesmos por meio de ideias obsessivas. Vulneráveis às hostilidades cruéis de si mesmos, projetam no outro seus delírios de perseguição, como mecanismo de defesa do seu eu.
A questão econômico-ecológica
O nome de nosso país vem de uma árvore chamada pau-brasil. Essa planta tinha uma resina que, além de ser vermelha, apresentava uma fosforescência que lhe dava a aparência de uma madeira se queimando, ou seja, de brasa. Com essa resina se tingiam os tecidos de vermelho e isso era um negócio muito rendoso na época. Além das grandes florestas, nossa terra tinha muitas águas. Na famosa Carta ao rei de Portugal, Pero Vaz de Caminha escreve que as “águas são muitas; infindas” e a terra é tão graciosa que, “querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”.
Desde então, esse paraíso terrestre foi dominado, explorado, saqueado, queimado, vendido e roubado. Sua enorme riqueza natural, cuja principal característica é a diversidade biológica, alimentou os impérios da Europa (como Portugal, Espanha, França e Inglaterra) e depois dos Estados Unidos. O Brasil nasceu dessa violência fundadora. Sua população originária foi perseguida, escravizada e destruída, de forma premeditada. Mais tarde, os colonizadores importaram africanos como se fossem não humanos: máquinas de extrair ouro, plantar cana, criar gado. O povo brasileiro nasceu de um Pai Europeu dominador e de uma Mãe Índia ou Africana espezinhada. A família brasileira surgiu de um estupro original. O nascimento do Brasil destruiu a Mãe Indígena, a Mãe Africana, a Mãe Água, a Mãe Floresta, a Mãe Terra. Essa violência fundadora domina até hoje o imaginário nacional.
Ao longo de nossa história, a violência contra a população, por parte da classe dominante e do Estado, foi um aspecto da brutalidade colonizadora que nunca respeitou a vida, esteja ela sob a forma de gente, de bicho, de planta, de água, de ar, de luz. E ainda que a vida seja também algo mais abstrato – pensamento, raciocínio, desejo, sentimento – ela permanece sendo ignorada pelos mortos-vivos que ocupam o topo da pirâmide econômica e social. Verdadeiros sanguessugas, esses zumbis defendem a ideia de terra arrasada: por onde passam, deixam seu rastro de morte e violência no afã de possuir, a qualquer preço – ao preço da vida! – o mundo e suas riquezas materiais.
Essa violência contra a natureza e a população, que dura mais de cinco séculos, encontrou sua expressão mais cruel e clara nos últimos anos. As queimadas na Floresta Amazônica, no Cerrado e no Pantanal destruíram centenas de milhares de vidas selvagens, além de árvores, frutos e águas potáveis. E nessa terra arrasada plantou-se pasto pra gado e soja pra exportação. Os bois aí criados passaram a ser exterminados aos milhares ou embarcados vivos em terríveis viagens marítimas rumo ao Oriente. Os jegues do Nordeste seguem o mesmo caminho e já se discute o perigo de sua extinção. Num cenário de extrema violência contra a natureza, o agronegócio consome 15.000 litros de água pra produzir 1 kg de carne bovina! Da mesma forma, além de matar dezenas de pessoas em Brumadinho e Mariana, a mineração também destruiu as importantes bacias hidrográficas do Rio Paraopeba e do Rio Doce. Garimpeiros e pescadores ilegais invadem terras indígenas e quilombolas, matando os que as defendem. A classe dominante brasileira – destrutiva, saqueadora, escravagista, narcísica – odeia o povo e o país. Educada por pais europeus e norte-americanos, essa classe não se identifica com o Brasil e com sua população. Pelo contrário, nos vê a todos como escravos: máquinas cuja tarefa é ampliar a riqueza e o poderio dos bilionários.
Tanto a experiência sócio-política como a experiência religiosa mobilizam, intensamente, imagens e vivências afetivas primitivas da personalidade do sujeito
Ao longo da História do Brasil, verificamos, portanto, que as elites econômicas atuam no sentido de aumentarem, cada vez mais, sua própria fortuna pessoal. Elas não têm um projeto de país, elas não se identificam com o povo brasileiro nem defendem valores democráticos e republicanos. As atividades econômicas destroem as riquezas humanas e naturais, arrasam o território nacional e contribuem para a fragilidade das instituições democráticas. Assim, o Estado brasileiro, ao invés de atuar para melhorar a vida de todos, torna-se um instrumento cruel de violência política, militar e policial, sob o patrocínio declarado ou envergonhado da “elite do atraso”, na expressão de Jessé de Souza.
A questão psíquica
O quarto aspecto do aumento da agressividade relaciona-se com a dimensão psíquica. Vários estudiosos da psicoafetividade do ser humano consideram que não existe um sujeito quimicamente puro: ou seja, o ser humano não possui dois psiquismos, um voltado para o sagrado e outro para o profano. Noutras palavras, não há um psiquismo dedicado a opções políticas conservadoras e outro visando às opções políticas emancipatórias.
Há, sem dúvida, desejos e motivações inconscientes e conscientes. A vida consciente do sujeito representa apenas uma pequenina parte do psiquismo, se for comparada à sua vida inconsciente. O ser humano não é seccionável em partes boas e más: ele é resultado de uma realidade multifacetada e repleta de vínculos. O desejo de pertencer à vida social atravessa elementos de natureza profunda, aos quais o sujeito não tem acesso imediato. No início de sua vida, o ser humano não percebe as imbricações que mesclam os dois níveis, inconsciente e consciente.
Tanto a experiência sócio-política como a experiência religiosa mobilizam, intensamente, imagens e vivências afetivas primitivas da personalidade do sujeito. A relação entre o indivíduo e os movimentos sociais pode ser responsável por manifestações comportamentais saudáveis, mas também pode propulsar doenças psíquicas como neuroses, perversão e traços perniciosos individuais ou coletivos. Por trás das causas confessas de nossos atos, há sem dúvida causas secretas que não confessamos, mas por trás dessas causas secretas há outras, bem mais secretas, pois nós mesmos as ignoramos.
O nível de magnitude psíquica de Deus, de um líder de massa ou de dilatados ideais cobra, aos sujeitos, um potencial extremamente significativo de afetos. Como totalidade desses aspectos, esse nível vem responder às exigências mais primitivas do psiquismo humano e às potencialidades mais intensas de seu mundo afetivo. Não é estranho que o louco, em sua negativa de aceitar qualquer modo de limitação, situe com tanta frequência a divindade no centro mesmo de suas alucinações e delírios. Nada como Deus ou um grande chefe político para responder às desmedidas aspirações de totalidade que marcam a infância e a loucura.
A massa estimulada a praticar a violência é impulsiva, volúvel e excitável
O trabalho de discernimento de um cidadão exige um acompanhamento espiritual e psicossocial que auxilie o diálogo entre esses dois mundos (inconsciente/consciente), cuja coexistência não é, em si, um problema. O problema, muitas vezes, não é patológico de per si. Ele se torna patológico quando negamos que não o temos. Os problemas fazem-se, isso sim, com o ocultamento, a repressão e o não-dizer sobre eles.
Algumas manifestações pré-eleitorais e pós-eleitorais no Brasil comprovam que nós somos regidos predominantemente pelo inconsciente e não tanto pelo consciente e pela razão. No inconsciente habitam muitos fantasmas: fantasias incestuosas, proibidas, escondidas e até perversas. Há elementos sadomasoquistas nas formas de causar dor ao outro ou de ter prazer com a dor e o sofrimento vindos do outro. Basta observarmos as escolhas machistas ou racistas. Há também excitações exibicionistas: mostrarmos excessivamente nossa imagem, ou seja, nosso narcisismo. Existe, ainda, o voyeurismo, na necessidade de se ver grandioso, sobretudo quando pertencemos a um movimento oceânico, gigantesco, massivo, e que possua um grande líder. Assim, o simples fato de pertencer a um grande movimento de massa chefiado por um mito leva o ser humano a descer vários degraus, na escala da civilização à barbárie. O psiquismo exacerbado alimenta-se muito da violência e do ódio, exigindo o pertencimento do sujeito a um grande movimento de massas onipotente e onisciente.
A massa estimulada a praticar a violência é impulsiva, volúvel e excitável. É guiada quase exclusivamente pelo inconsciente. Seus impulsos são cruéis, acríticos e o improvável não existe para ela. Tudo isso provoca uma loucura compartilhada. Inclusive há uma síndrome da loucura que os franceses chamam de folie à deux (loucura a dois). Trata-se da maneira de a pessoa compartilhar seus sintomas psicóticos a outra pessoa ou a grupos. Os sujeitos relativamente saudáveis acabam se identificando com esse personagem enlouquecido e criando relações enlouquecedoras. Assistimos a identificações psíquicas tecendo traços semelhantes grandiosos e germes de antipatia que se tornam ódio erótico. Tais comportamentos são cada vez mais distanciados da realidade, da racionalidade e do mundo simbólico. Os grupos fecham-se numa bolha, diante das frustações de perdas e não realizações. O luto e a angústia são postergados – por exemplo, ao se perder as eleições. Há uma profunda aversão a se aceitar o jogo democrático: o fato de ganhar ou perder é substituído pela criação de um mundo fantástico e maravilhoso, no Walt Disney World, em Orlando, Flórida. Outro exemplo do distanciamento da realidade é o personagem que, no Rio Grande do Sul, ficou conhecido como o “homem do caminhão” – aquele que, apoiado num para-choque de caminhão, ignorou completamente a realidade à sua volta. Ao se fixar, delirantemente, no para-choque do caminhão, ilusoriamente ele interrompeu sua angústia, sua loucura.
Não podemos subestimar o que está acontecendo atualmente no Brasil! Trata-se de um movimento econômico, social, político e religioso que conseguiu uma capilaridade extraordinária. As pequenas e grandes organizações, estão, de uma certa forma, enviando uma mensagem para a sociedade. Esse discurso religioso, histórico-social, econômico, ecológico e psíquico ressuscita recalques de povos originários, negros, mulheres e identidades sexuais, além de apresentar diferentes formas de se viver Deus, as diferenças entre as classes e os problemas ecológicos.
Não é possível a gente pensar assim: “Deixe o louco solto... deixe o louco falar”. Não, precisamos escutar essa “loucura”. Precisamos criar dispositivos para ouvir as formas enlouquecedoras que emergem da sociedade brasileira.
William Castilho é Psicólogo Clínico, doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor Emérito da PUC Minas. Autor de livros e artigos e assessor Ad hoc do CELAM, CRB e a CNBB
P. S. Este texto foi escrito dia 3 de dezembro de 2022, quase 30 dias depois, dia 8 de janeiro de 2023, presenciamos a vandalização de grupos bárbaros em Brasília destruindo símbolos nos palácios dos três poderes.
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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Elis Almeida