A crise de crédito é um bom momento para usar os bancos públicos para reduzir as taxas de juros
A vida da ala econômica do governo Lula não tem sido fácil. O governo popular herdou um verdadeiro desastre econômico deixado pela combinação de neofascismo e neoliberalismo do governo Guedes-Bolsonaro. O orçamento da União era uma peça de ficção com apenas R$ 25 mil para a resposta a catástrofes naturais em todo o país.
A queda do desemprego disfarça um enorme contingente de pessoas subempregadas, desalentadas (que desistiram de procurar emprego) ou empregadas em condições precárias. O país tem 33 milhões de pessoas passando fome, mais de 100 milhões com algum grau de insegurança alimentar.
Os economistas liberais tentam disfarçar a tal herança maldita alegando que tivemos superávit primário no ano passado, mas a realidade não mente.
Quando não se pode confiar no balanço de uma empresa de capital aberto, o sistema começa a travar
Não bastasse o passado, o futuro também projeta nuvens no horizonte. A fraude das Lojas Americanas está aos poucos abrindo um buraco no mercado de crédito brasileiro. Fraudes financeiras criam um problema muito complexo na economia: a incerteza profunda sobre as informações mais elementares que especuladores, bancos, e empresas usam para tomar decisões no mercado financeiro.
Mas essa incerteza pode ser uma oportunidade para o governo popular tomar mais controle sobre o ritmo de acumulação de capital.
A coisa funciona assim: um banco decide abrir uma linha de crédito para uma empresa com base nos “fundamentos” da empresa. Fazem cálculos a partir das expectativas de receita, dos custos, do grau de atividade no setor da empresa etc. A partir desses cálculos, define-se um risco para aquela operação e, portanto, uma taxa de juros que remunere o capital do banco de acordo com o risco.
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No entanto, quando não se pode confiar nem nas informações contidas no balanço de uma empresa de capital aberto, o sistema começa a travar.
Pior, como os acionistas de referência dessa empresa são os três maiores capitalistas brasileiros, como fica a confiança dos emprestadores nas outras várias empresas que atuam sob o controle dos três?
Risco e incerteza
A Light, empresa de energia elétrica privatizada do Rio de Janeiro conhecida pelos seus péssimos serviços, também tem participação de 10% de Alberto Sicupira, um dos bilionários que controlam as Lojas Americanas. A Light também está em dificuldades, quem vai topar rolar as dívidas da empresa?
Essa situação ilustra a diferença entre risco e incerteza, como os economistas costumam definir. Risco é algo calculável, incerteza é algo mais profundo. Imagine que risco é você saber que um rio tem 2 metros de fundura e decidir pular para nadar. Pode dar errado, mas você sabe onde está entrando. Incerteza é não fazer ideia se o rio é fundo ou se existe alguma correnteza. Você entraria no rio?
Diante de uma situação de incerteza, a atuação do governo é fundamental. O governo, por seu tamanho e capacidade de ação é capaz de transformar incerteza em risco. Nem sempre e nem toda incerteza, mas numa situação como a do atual mercado de crédito, é possível atuar.
O governo já está avaliando retomar programas de empréstimos para pequenas e médias empresas da pandemia. O endividamento das famílias também está no radar: o programa Desenrola de renegociações de dívidas, prometido na campanha, já está pronto, segundo o ministro da Fazenda Fernando Haddad.
A maior atuação do governo em situações de incerteza se dá com os “peixes grandes”. O governo deve atuar para “garantir a liquidez” do sistema financeiro. Ao permitir que os grandes bancos troquem certos ativos financeiros de crédito por dinheiro, o governo cria condições para os bancos retomarem a oferta de crédito para as empresas. Assim se evita que a economia trave por conta da incerteza.
Crítica é necessária
Aqui é normal que o nosso campo popular reclame. É um absurdo que o governo atue para ajudar a limpar os balanços de bancos enquanto quase 80% das famílias estão endividadas. Infelizmente, o tio do Homem-Aranha estava errado. No capitalismo, grandes poderes vêm com o direito a grandes irresponsabilidades. Desde a crise de 2008, entendemos que os grandes bancos são “grandes demais para falir”. Eu e você não somos grandes demais para falir.
No entanto, ainda que a tarefa de gerenciar uma economia capitalista force o governo a tomar essas medidas que acabam por favorecer os grandes irresponsáveis, nunca devemos desperdiçar as oportunidades de uma crise. Ao se apresentar como o “emprestador de última instância” no mercado financeiro, o governo deve exigir contrapartidas.
O contrapasso da acumulação de capital é o momento de entrar na marcha e passar a ditar o ritmo
A crise de crédito, caso a situação continue se deteriorando, é um bom momento para usar os bancos públicos para reduzir as taxas de juros abusivas no país. Também é um bom momento para regular e punir a atuação das grandes consultorias e agências de avaliação de risco que chancelam fraudes financeiras.
A intervenção no mercado de crédito também é uma boa forma de ajudar a política industrial, favorecendo o crédito para setores de economia verde, para projetos de habitação para baixa-renda ou de reforma urbana.
São várias oportunidades para o governo se posicionar para alavancar sua posição de dissipador das incertezas criadas pelo capitalismo financeirizado. Para um governo popular, o contrapasso da acumulação de capital é o momento de entrar na marcha e passar a ditar o ritmo.
Pedro Faria é economista e doutor em história. É pesquisador vinculado ao Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG, ao Instituto Economias e Planejamento e militante do Movimento Brasil Popular.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
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Edição: Larissa Costa