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Artigo | Um ano de conquistas dos Xukuru-Kariri em Brumadinho (MG)

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Centenas de pessoas que participaram da celebração do primeiro ano de luta da retomada indígena - Foto: Hugo Sales / Rede de Apoio à Aldeia Arapowã Kakyá
Fazenda estava totalmente abandonada e sem cumprir sua função social

Por volta das três horas da tarde, do dia 20 de fevereiro de 2022, guiados, em sonho, pelo Grande Espírito e todos os encantados, dezessete famílias (57 parentes) do Povo Indígena Xukuru-Kariri, chegaram à fazenda Bruma, em Brumadinho. Oriundos do estado de Alagoas, peregrinaram e lutaram por um território durante várias décadas, com apenas a roupa do corpo, mas com muita coragem, união, com a garra de um povo guerreiro.

Ao lado de uma lagoa e de uma casa grande toda devastada, arrancharam e passo-a-passo foram construindo suas barracas de lona preta e estão se enraizando no território há mais de um ano.   

Os Xukuru-Kariri ocuparam uma das 127 fazendas compradas pela mineradora Vale após o crime-tragédia, que iniciou-se dia 25 de janeiro de 2019 e continua impune e se reproduzindo cotidianamente.

A fazenda Bruma estava totalmente abandonada, ociosa e sem cumprir sua função social. A casa grande da sede da fazenda estava destelhada e com todas as portas e janelas arrancadas. Era lixo e entulho por todos os lados. Assim a Vale S/A tem feito em todas as fazendas compradas. Compra a fazenda, arranca o telhado, as portas e as janelas das casas e deixa tudo abandonado, em claro indício de que só lhe interessa o território para ampliar exploração minerária.   

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Dia 25 de fevereiro, aconteceu a celebração de um ano de luta pela conquista do território de 156 hectares que segue sob disputa judicial. Um encontro festivo maravilhoso, inesquecível, com cerca de 500 pessoas, indígenas e lideranças da grande Rede de Apoio à Aldeia Arapowã Kakyá.

Em uma linda sinfonia, os parentes Xukuru-Kariri acolheram a todos cantando e dançando toré com cantos lindos, partilhando com todos um pouco da sua entusiasmante mística e espiritualidade, em cantos. Teve apresentação do Bloco Carnaval Ambiental, de Casa Branca, em Brumadinho, roda de conversa com a palavra partilhada pelo cacique Carlos Arapowanã e outras lideranças de outros Povos Indígenas presentes. Muitas lideranças da Rede de Apoio também usaram o microfone para saudar o Povo Xukuru-Kariri e renovar o compromisso com a causa justa e legítima da retomada do território. Teve almoço comunitário, jogos indígenas e muita convivência alegre e festiva.

Nos primeiros meses, o Povo Xukuru-Kariri enfrentou o bloqueio da entrada e saída da fazenda por seguranças armados da Vale S/A, que não deixavam entrar nenhum automóvel. A Vale chegou ao absurdo dos absurdos de jogar vários caminhões caçamba de terra em outra entrada que os parentes Xukuru-Kariri tinham feito em mutirão, com suor e muito trabalho, para acessar a estrada. Até que no dia 19 de abril de 2022, Dia dos Povos Indígenas, uma criança Xukuru-Kariri quase morrendo, precisando de inalação por problemas respiratórios, foi impedida de ser levada ao pronto socorro do SUS na cidade de Brumadinho. Tomado por ira santa, os guerreiros Xukuru-Kariri resolveram desbloquear na marra a entrada de acesso à comunidade, derrubando cercas e portão.

Neste primeiro ano de muita luta podemos enumerar várias conquistas: os seguranças armados da Vale foram expulsos; hortas comunitárias foram construídas, o que melhorou a alimentação da comunidade; a água chegou à sede da Aldeia e a energia elétrica em todas as 17 casas de pau-a-pique e barro construídas em mutirão; o Ouricuri, que é  a casa sagrada, foi construída no meio da mata, onde a comunidade cultiva sua mística e espiritualidade; um sistema agroflorestal está em curso com o plantio de mais de duas mil mudas de árvores nativas do cerrado e da Mata Atlântica; uma escola estadual Xukuru-Kariri, com quatro salas de aulas de taipa, foi construída; agora a aldeia é reconhecida pelo Poder Público do Município, de onde já são, inclusive, cidadãos eleitores; nasceu o primeiro guerreirinho Xukuru-kariri no território retomado; a Rede de Apoio só cresce; a produção de artesanato indígena de uma exuberante beleza segue como um dos meios de cultivar e divulgar a mística indígena e também como meio de autossustento.

As centenas de pessoas que participaram da celebração do primeiro ano de luta da retomada indígena dos Xukuru-Kariri na Aldeia Arapowã Kakya saíram de lá certos de que a mineradora Vale, com a cumplicidade do Estado, segue fazendo uma brutal sexta-feira da paixão na região de Brumadinho. Ao passo, que o povo Xukuru-Kariri e todos os povos indígenas em luta pela retomada de seus territórios seguem construindo um domingo de ressurreição com justiça socioambiental e respeito à natureza. Caminho necessário para frearmos as mudanças climáticas, impedirmos a “queda do céu” (expressão do xamã Davi Copenawava) e os eventos climáticos extremos que cada vez estão se tornando mais frequentes e letais.  

A causa indígena é totalmente coerente com a necessidade urgente de mudança radical dos modos de produção e da economia capitalista hegemônica. É uma causa de fato altamente justa e revolucionária. O povo indígena Xukuru-Kariri é de luta, povo com uma cultura maravilhosa, multimilenar.

Demarcação já!

Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica)

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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Edição: Elis Almeida