Tem de se dar em várias frentes a luta contra injustiças de um capitalismo dependente e periférico
Para quem se chocou ao descobrir que o vinho, espumante ou suco de uva que tomou tem gosto de trabalho escravo, uma notícia pior: o trabalho forçado está mais presente em nossas vidas do que imaginamos. Talvez o trabalho escravo esteja, direta ou indiretamente, em outros produtos agropecuários que consumimos, na roupa que usamos, no edifício em que moramos ou frequentamos, ou na instituição financeira com a qual lidamos.
As formas coercitivas de exploração do trabalho – envolvendo, especialmente, maus tratos e escravidão por dívida – estão presentes em várias cadeias de produção e de serviços da economia brasileira. Não que predominem, que a economia brasileira se mova à base de trabalho coercitivo, mas também não são, infelizmente, ocorrências excepcionais, isoladas, sem importância no conjunto de nossa economia.
Não são resquícios exóticos de um sistema pré-capitalista fadado a desaparecer com a marcha, supostamente inevitável, da modernização e da racionalização da economia. As formas coercitivas de exploração do trabalho são parte integrante da ordem capitalista brasileira, que convive com o moderno e com o arcaico.
Vinho tinto de sangue
Sim, o trabalho escravo, no Brasil, está presente em formas arcaicas de exploração econômica, mas não só nelas. Os episódios recentes na serra gaúcha o provam. Uma ação conjunta da Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 207 trabalhadores mantidos sob violência e condições degradantes pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, que terceirizava os serviços dos trabalhadores para as vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi, três das mais importantes empresas do setor.
A maioria dos trabalhadores era da Bahia, iam até o Rio Grande do Sul iludidos por promessas de salário, alojamento e refeições e encontravam uma realidade terrivelmente diferente. As vinícolas alegaram não saber das condições impostas aos trabalhadores pela intermediadora de mão de obra. Os processos judiciais avaliarão se é verdade, assim como o grau de responsabilidade delas frente aos acontecimentos.
O certo, porém, é que, mais uma vez, fica evidente que o capitalismo brasileiro não se baseia somente em trabalho livre.
Sistema econômico desigual
Pensadores clássicos do capitalismo, como Karl Marx e Max Weber, postulavam que o trabalho livre seria um pilar desse sistema econômico. Segundo Marx, para que o possuidor de dinheiro encontrasse no mercado a força de trabalho, o trabalhador, a pessoa a quem pertencia essa força de trabalho, deveria oferecer tal trabalho como mercadoria. Para isso, o trabalhador deveria ser proprietário livre de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa.
De forma convergente, para Max Weber, o capitalismo seria impossível se não houvesse uma camada de destituídos de propriedade, compelida a vender sua força de trabalho como mercadoria para viver. E o cálculo capitalista racional só seria possível com base no trabalho livre, garantia Weber.
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Como explicar, na nossa economia, a persistência dessas relações aparentemente “não capitalistas” de produção?
Ultimamente, a ligação umbilical entre capitalismo e trabalho livre, que os teóricos clássicos sentenciaram, vem sendo contestada. No livro Free and unfree labor, os pesquisadores Marcel van der Linden e Tom Brass afirmam que o capitalismo não só é compatível como, em algumas situações, chega a preferir o trabalho não livre.
A condição periférica e dependente do capitalismo brasileiro criaria algumas dessas situações?
Talvez. Como ressaltou Florestan Fernandes, a burguesia brasileira possui, no capitalismo internacional, uma posição dependente/associada, é uma espécie de “sócia menor” desse sistema global – daí sua adjetivação do capitalismo brasileiro: periférico e dependente.
Nossa elite tem uma dupla vinculação: a) externamente, com as classes dominantes dos países centrais, ou seja, ao que há de mais “moderno” e institucionalizado no sistema capitalista; b) e, internamente, com os setores mais atrasados e informais, pouco ou nada institucionalizados, da nossa economia.
Essa elite, assim, é periferia no âmbito internacional e centro no âmbito nacional. Essa dupla vinculação reforça uma situação de superexploração capitalista, que se dá tanto pelos aspectos modernos quanto atrasados do sistema, por meio de uma dinâmica de modernização conservadora.
Termo contraditório: modernização conservadora
Modernizar e conservar não seriam opostos? Contradição, para alguns, é algo problemático a ser evitado. Para Georg Wilhelm Friedrich Hegel, a contradição é inerente à vida. A vida se desenvolve, flui, por meio de realidades que, em seu movimento interno, geram contradições, que são superadas, transcendidas, ocasionando nova realidade que gerará novas contradições e superações e assim por diante, sempre.
Karl Marx seguiu Hegel, nesse ponto, propondo, ainda, o exame da realidade social e histórica e a ação a ser desenvolvida sobre ela. Do ponto de vista hegeliano e/ou marxista, portanto, não há problema em conceitos como “modernização conservadora”.
O termo foi cunhado, na década de 1970, pelo sociólogo estadunidense Barrington Moore Jr., para explicar um padrão de mudança das sociedades por ele denominado “revolução pelo alto”, que se estabeleceu, paradigmaticamente, em países de industrialização tardia, como Alemanha e Japão, antes da Segunda Guerra Mundial.
A modernização desses países, segundo Moore Jr., deu-se no sentido de se implantar um modelo não democrático de capitalismo, no qual estruturas sociais, políticas e econômicas atrasadas não foram superadas – uma espécie de “compromisso entre o velho e o novo”, viabilizado pela aliança, explícita ou tácita, entre a burguesia urbano-industrial-comercial e os proprietários rurais.
Relação entre centro e periferia
A modernização conservadora traz uma lógica centro-periferia, em que a parte central da sociedade, mais direta e imediatamente atrelada aos núcleos dinâmicos do capitalismo internacional, moderniza-se a passos rápidos, enquanto a periferia claudica, só se moderniza indireta e reflexivamente, e permanece desprezada.
Mas o centro e a periferia não são, de forma alguma, compartimentos estanques, incomunicáveis entre si, ao contrário, sua relação é dinâmica, constante e ambígua, e a própria evolução do centro fica prejudicada, tolhida, incompleta, pelo abandono a que se relega a periferia.
Por exemplo, na questão trabalhista, a forte presença, em nossa economia, do desemprego, da terceirização irrestrita e de um setor informal e/ou sujeito a formas coercitivas de exploração gera um enorme contingente de mão de obra de reserva, disponível, que rebaixa o próprio patamar das condições de pactuação da força de trabalho para os trabalhadores formais, institucionalizados.
Há que se entender, portanto, que, em sociedades periféricas como a nossa, o tempo do capital, como afirma José de Souza Martins, não é apenas o tempo unilinear do progresso e da modernização, no sentido marxista, ou da implantação inexorável da conduta econômica racional, no sentido weberiano.
“O tempo da reprodução do capital é o tempo da contradição; não só contradição de interesses opostos, como os das classes sociais, mas temporalidades desencontradas e, portanto, realidades sociais que se desenvolvem em ritmos diferentes, ainda que a partir das mesmas condições básicas”, disse José de Souza Martins.
Ou seja, as contradições do capitalismo brasileiro, construído sob a dinâmica da modernização conservadora, incluem as contradições entre tempos históricos – daí, entre outras coisas, o compromisso entre o velho e o novo, a que aludia Moore Jr.
Compromisso que não se manifesta somente na realidade concreta da produção de bens e serviços, mas que tem no campo da cultura política, um elemento crucial, que a análise e a ação políticas não podem desprezar.
Elite retrógrada e escravista
Tomemos, por exemplo, a mentalidade escravista de boa parte de nossas elites e classes médias. Tornou-se um jargão, nos últimos anos, denunciar essa postura. Por ser jargão, contudo, não deixa de ser verdade. Realmente, só uma mentalidade escravista persistente, retrógrada, que se recusa a morrer malgrado todas as inovações, ajuda a explicar reações estúpidas ao caso dos trabalhadores escravizados, como o patético discurso do vereador de Caxias do Sul, Sandro Fantinel (não por acaso, bolsonarista convicto), ofendendo os baianos ou a ridícula nota do Centro de Indústria e Comércio de Bento Gonçalves, culpando o “assistencialismo” pelo fato de os empresários locais terem de “buscar” trabalhadores de outros lugares – e tratá-los, então, de forma degradante?
Tem de se dar em várias frentes a luta contra as injustiças de um capitalismo dependente e periférico, e agudamente explorador, pois mescla o arcaico e o contemporâneo e retira vantagem de ambos. Tem de se dar na inserção mais altiva e ativa do Brasil no cenário internacional, para que nossa economia se desenvolva com mais autonomia, assim como no combate sociocultural às mentalidades autoritárias, e também na ação do Estado para cumprir o desenvolvimento sustentável e inclusivo, os direitos humanos e a agenda social, diretrizes inscritas na Constituição de 1988.
Sem isso, a imensa e esquecida periferia continuará, vez por outra, a jogar na cara dos supostamente “civilizados” o quão selvagem e violenta é nossa realidade.
Rubens Goyatá Campante é doutor em Sociologia pela UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras).
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Larissa Costa