Minas Gerais

AUTORITARISMO

Ex-diretor da Companhia de Dança do Palácio das Artes reflete sobre sua demissão pelo governo

Espetáculo cancelado por Romeu Zema (Novo) aconteceria nesta quarta-feira (15). Confira entrevista com Cristiano Reis

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
"A companhia cumpre uma função social, que é fruir a dança, contemplar, mas também refletir e pensar com a dança. Para um governo autoritário, retrógrado e conservador, isso significa ameaça" - Foto: Paulo Lacerda / Fundação Clóvis Salgado

Os bailarinos da Companhia de Dança do Palácio das Artes repetiriam, nesta quarta (15), a apresentação do espetáculo m.a.n.i.f.e.s.t.a., sucesso de crítica e público nas duas apresentações de novembro de 2022, em Belo Horizonte. A trajetória foi interrompida abruptamente pelo governo de Minas Gerais, que, além de cancelar a temporada, demitiu o diretor, uma bailarina ensaísta e a gerente da companhia.

“Em janeiro me informaram que o espetáculo seria engavetado, que não agradava o governo atual. Oito dias depois, por chamada de vídeo, me informaram que meu currículo foi ‘desaprovado’ pelo governo”, conta Cristiano Reis, que atuou como diretor do grupo por 22 anos e dois meses, e recebeu essa justificativa para sua dispensa.

A nota oficial do governo mineiro abre mais dúvidas que explicações. Segundo a Secretaria de Estado de Cultura (Secult), as demissões ocorreram por força do Decreto nº 48563, de primeiro de janeiro deste ano, que em tese incluiu a exoneração em várias pastas em busca de “racionalização do uso dos recursos públicos e promoção do aumento da produtividade”. Entretanto, destacou a Secult, a lei continua permitindo a nomeação de pessoas de confiança.

Desde então, artistas mineiros têm feito uma série de denúncias sobre falhas nesse processo, a começar pelo anúncio de Tuca Pinheiro como novo diretor da companhia. Ao Brasil de Fato MG, Cristiano explica que Tuca estava em negociação para dirigir um projeto da companhia, e não o grupo em si.

Nesta entrevista, Cristiano conta detalhes da demissão e reflete sobre a importância do grupo.

“É um pensamento autoritário que está tentando se impor a uma construção que respeita a diversidade, o m.a.n.i.f.e.s.t.a. fala disso. A companhia, mais do que uma companhia de dança contemporânea, é uma companhia com um pensamento contemporâneo de dança”, expressa Cristiano Reis.

Confira:

Brasil de Fato MG – Como a sua exoneração aconteceu? Pode nos contar mais detalhes?

Cristiano Reis – A companhia teve a estreia do m.a.n.i.f.e.s.t.a. em novembro [de 2022] e foi um espetáculo muito bem recebido pelo público, com uma força muito grande. Um espetáculo que investigou o modernismo brasileiro com um olhar contemporâneo. Sucesso de crítica. Eu já tinha tido sinais dizendo que a gestão [do governo de Minas] que entrou talvez fizesse a companhia retornar a um formato mais tradicional. A companhia é do estado e cada governo quer deixar a sua “marca”, interferir no trabalho que é contínuo.

Em janeiro, me informaram que o espetáculo seria engavetado, pois não agradava o governo atual. Oito dias depois, por chamada de vídeo, me informaram que meu currículo foi “desaprovado” pelo governo. Tenho 22 anos à frente da Companhia de Dança do Palácio das Artes e um currículo muito bom, na verdade. Não foi o currículo. Isso era uma justificativa sem sentido. Junto comigo foram demitidas a gerente e uma bailarina, que fazia a assistência de coreografia.

E você imagina quais são os motivos para a sua demissão?

A minha demissão foi um ato violento, sem diálogo, sem inteligência, e a Companhia de Dança é um bem imaterial de Minas Gerais, merece respeito por sua trajetória nesses últimos 23 anos, quando começou um processo de construção colaborativa. Os bailarinos têm voz na criação, e voz é força, é compor o espetáculo, pensar o tema, ligar o tema com a atualidade.

O m.a.n.i.f.e.s.t.a. se ligou muito às coisas que estamos vivendo no Brasil, uma situação tensa e polarizada. Esse espetáculo não tem nada que fala diretamente disso, mas foi lido como um lugar de diversidade, de fala, de democracia. Não é à toa que a arte e a cultura estão sendo tão atacadas. É o que faz o ser humano pensar, sentir e não só ficar a serviço de metas, projetos e números.


Cena do estáculo m.a.n.i.f.e.s.t.a. / Foto: Paulo Lacerda / Fundação Clóvis Salgado

A companhia de dança tem uma missão muito ligada à missão da própria Fundação Clóvis Salgado, que é de pesquisa, conhecimento, inovação na arte, na diversidade, na multiplicidade.

A secretaria lançou nota afirmando que a companhia será dirigida por Tuca Pinheiro. Deixando a entender que ele vai ocupar o cargo do qual você foi exonerado. Como funciona?

O cargo que eu ocupava é de livre nomeação e exoneração. Eu estive nele por 22 anos e dois meses. Quando completei 15 anos de companhia de dança, eu recebi a proposta de ser diretor. Nesses anos, eu respondi pela companhia de dança. Meu cargo não é político apenas, eu fiz uma audição pública, tive que passar por uma prova.

Com 22 anos e dois meses, fiz uma carreira artística dentro da Fundação Clóvis Salgado. Eu coreografei ópera, trabalhos da orquestra, os 40 anos do Coral Lírico de Minas Gerais. Tenho uma construção ali dentro bastante sólida e consistente. E se for pensar, meu trabalho é colocado à prova o tempo inteiro, não só pela Fundação, pela crítica de arte, de dança. É um cargo de livre nomeação quando interessa.

O Tuca Pinheiro [mencionado por nota do governo como próximo diretor da companhia] ia dirigir uma coreografia e não a companhia. Uma remontagem que eu deixei no projeto de 2023, que completa 20 anos de existência e foi um marco. A companhia saiu de Belo Horizonte, há 20 anos, foi para o Vale do Jequitinhonha, ficou dez dias em pesquisa de campo e teve um ano de trabalho criativo para estrear. Foi um dos trabalhos mais fortes e consistentes na pesquisa que a companhia fez.

São parcerias. Os coreógrafos e diretores são convidados para coordenar projetos e montagens da companhia. Isso tudo foi conversado com o grupo, em uma construção democrática: “eu pensei em fulano, vocês querem trazer outro? Querem trazer professores? Quais aulas vocês acham que a gente está precisando?” É um jeito de trabalhar e por isso que não me querem.

Eles querem os bailarinos morrendo de medo, que alguém dê todas as regras e fale o que está certo ou errado, e pronto. É um pensamento autoritário que está tentando se impor a uma construção que respeita a diversidade. Ele reflete no pensamento de dança. A companhia, mais do que uma companhia de dança contemporânea, é uma companhia com um pensamento contemporâneo de dança. É diferente.

Dança contemporânea pode ser entendida como um estilo de movimento. Para mim, não. É um jeito de pensar a dança, na contemporaneidade. Pensar o corpo, pensar o sujeito que dança, e não um objeto bailarino. Tem colegas que até hoje perguntam: quantos “elementos” você tem? Eu quase respondo: não! Quantas pessoas, quantos bailarinos, artistas. Cada um traz sua cultura, sua experiência, sua técnica, seu jeito de olhar o mundo e a gente vai criar algo que tem diversidade de pensamento também.

É disso que eles [governo] têm medo. O m.a.n.i.f.e.s.t.a. falava disso, outros trabalhos também falavam disso, como o espetáculo lalangue: carta à mãe, que mostra o mundo como se as leis fossem criadas por mulheres e não por homens.


Cena do espetáculo lalangue: carta à mãe / Foto: Fundação Clóvis Salgado

A companhia cumpre uma função social, que é fruir a dança, contemplar a dança, mas também refletir e fazer pensar com a dança. Uma função muito expandida. Mas, para um governo autoritário, retrógrado e conservador, isso significa ameaça. As pessoas não podem pensar. Elas devem trabalhar, muito cansadas, exercendo várias funções ao mesmo tempo, ganhando pouco, de modo que não sobre energia nem para pensar e se posicionar criticamente.

Quando você trabalha o pensamento contemporâneo de dança, você está trabalhando o sujeito de agora, que pensa. Nos espetáculos, para ter uma ideia, a gente tinha várias parcerias, conversávamos com antropólogo, com uma socióloga para saber como ela vê o tema. A companhia é maravilhosa. A Companhia de Dança do Palácio das Artes é maravilhosa! E eu defendo esse lugar.

Ao mesmo tempo que o governo de Minas o exonerou, ele também demitiu os dois jornalistas mais antigos da Rádio Inconfidência, a rádio pública de Minas. Parece que Romeu Zema (Novo) está chegando na sua segunda gestão fazendo uma interferência maior na cultura. Como você está vendo essa movimentação?

Saiu na mídia que o senhor governador não sabia quem era a Adélia Prado… e para que ele iria querer saber quem é Adélia Prado? Ele é uma pessoa de uma empresa privada, de um pensamento neoliberal, que está tentando se impor no governo do estado. Eu sinto que esses desgovernos vão tirando, tirando e tirando verba. Eu fiz um espetáculo com a Orquestra Sinfônica que eu fui coreógrafo, eu fui cenógrafo, iluminador e figurinista, e eu te falo o quanto economizou no projeto.

Quando eu cheguei em Belo Horizonte, em 2000, eu era alucinado com a quantidade de festivais, eventos de arte, cultura, dança. Mas nesses últimos dez anos fecharam cinco grandes companhias de dança da cidade, o FID [Festival Internacional de Dança], que trazia companhias da dança contemporânea europeias, da América Latina, do mundo todo, cresceu a um ponto incrível, de criar festivais paralelos. Agora, aconteceu online, o que significa não acontecer.

Quando entra um cara que é administrador de empresa, é muito limitado. Quem está pensando a política pública cultural de Minas? O Palácio das Artes está caindo aos pedaços. Iluminação, no palco falta gente, funcionários fazendo duas, três, quatro funções. Não é somente a companhia, é um desmonte da cultura mineira.

Vejo um governo que não se preocupa com isso, mas não fico surpreso. Cada um dá o que tem, e talvez nessa parte, o governo mineiro não tenha muito para dar.

Assista ao espetáculo m.a.n.i.f.e.s.t.a. no Youtube:

 

Edição: Larissa Costa