Quanto maior o gasto dos pobres com energia, menor será a parcela da renda destinada à alimentação
O desenvolvimento econômico pode ser pensado a partir de três aspectos relevantes. O primeiro é que o desenvolvimento está sempre inserido em um determinado contexto histórico e geográfico, o que torna ineficiente o ato de pensar soluções perenes ou universais.
O segundo aspecto é que o desenvolvimento pode contemplar inúmeras questões econômicas e sociais, de modo que, na prática, varia a depender de quem define as prioridades. Assim, a capacidade de incluir as demandas dos diversos setores da sociedade, de sustentar possibilidades permanentes de participação e de garantir que todas as vozes se façam presentes também alteram sobremaneira o que o desenvolvimento representa em um determinado contexto.
O terceiro aspecto é que o principal indutor do desenvolvimento, inclusive quando analisados os países economicamente mais bem-sucedidos, sempre foi a presença de uma coordenação estratégica entre etapas e setores, papel que só pode ser desempenhado pelo Estado. Além disso, há investimentos fundamentais para o funcionamento de vários setores que apenas o Estado tem interesse e condições de realizar.
História do setor energético
Já com essa percepção, em 1946 foi lançado o primeiro Plano Nacional de Eletrificação do Brasil. Naquele momento, já havia uma noção de que a constituição de um setor industrial relevante era um indutor fundamental para a economia nacional, e que era necessário que o Estado criasse condições para garantir a oferta de energia elétrica em quantidade suficiente e a preços adequados.
Quase 20 anos depois, em 1962, foi criada a Eletrobrás, que além de produzir energia garantindo a oferta necessária, teria o papel de coordenar o crescimento do setor elétrico, de modo que este pudesse ser uma ferramenta a serviço do desenvolvimento, ou seja, uma ferramenta para a superação do subdesenvolvimento e das desigualdades socioeconômicas.
Mais de 60 anos depois da sua criação, a Eletrobras se tornou responsável por cerca de um terço de toda a capacidade de geração de energia elétrica no Brasil. Para que isso fosse possível, foi necessário que a estatal tomasse a frente da criação e expansão do sistema de geração e distribuição de energia, garantindo a infraestrutura necessária para que empresas privadas também pudessem se estabelecer e contribuir para o setor.
Em 1997, foi criada a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) com intuito de regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica. Pode parecer que o papel original da Eletrobrás já estava então cumprido: uma infraestrutura básica estabelecida, o setor privado com condições crescentes de produção e distribuição energética, e a Aneel fazendo o papel de regulação.
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Porém, a Eletrobrás não foi pensada apenas para ter o papel de produção e de regulação do setor elétrico, mas para ser uma ferramenta estratégica a ser utilizada pelos governos em prol do desenvolvimento socioeconômico nacional. E, conforme destacado no início do texto, o desenvolvimento é um processo em constante construção. Desse modo, se no começo de sua história a maior contribuição da Eletrobrás para a e economia nacional foi garantir o suprimento e a distribuição energética, em um novo contexto sua função deve ser reavaliada, o que não significa que seu papel estratégico esteja desgastado.
E quais as demandas do desenvolvimento hoje? Ou, dito de outra forma, como a estrutura elétrica brasileira deve avançar para ser uma ferramenta para o alcance dos nossos objetivos coletivos?
O desenvolvimento que devemos querer para o Brasil hoje é inclusivo e sustentável, o que significa dizer que a mitigação da degradação ambiental e as desigualdades sociais devem ser o centro do debate, e que a coordenação estatal em prol do desenvolvimento, que outrora teve a industrialização como mote principal, agora deve ter nesses dois aspectos seu maior foco.
O sequestro da Eletrobrás
Em 2022, a Eletrobrás foi privatizada por meio de um processo de capitalização, que consiste na venda de novas ações na bolsa de valores, reduzindo a participação acionária do governo federal de 63% para 42%. Para além dos argumentos contrários à privatização de uma estatal lucrativa e estratégica, o processo em si foi alvo de muitas críticas, pois ocorreu sem a apresentação de uma avaliação de valor da empresa que pudesse embasar a negociação, além da proposta não ter passado por nenhuma comissão permanente e não ter sido devidamente debatida em âmbito público.
Durante o processo, foram criadas duas regras que acabam com a influência do governo sobre a empresa. A primeira limita o poder de voto dos acionistas, na medida em que o voto deixa de ser proporcional ao percentual de ações que o agente possui. Assim, mesmo tendo 42% das ações, o governo tem apenas 10% dos votos. Desse modo, a Eletrobrás não pode mais ser utilizada como uma ferramenta para uma transição energética justa, equitativa e estratégica, e cumprir seu enorme potencial de contribuir para a superação da pobreza no Brasil.
A segunda regra estabelece que se um acionista quiser obter mais de 50% do capital, ele terá que ofertar ações a um valor 200% maior que o valor de mercado aos demais acionistas. Desse modo, se o governo quiser reverter a privatização via compra de ações, a Comissão Nacional de Energia calcula um gasto de R$ 161 bilhões, enquanto sem a cláusula a reestatização custaria cerca de R$ 5 bilhões.
Impactos da privatização
Também não foi apresentado nenhum estudo de impacto tarifário durante o processo. Se há uma agência reguladora no setor, a Aneel deveria cumprir com o papel de avaliar um movimento dessa magnitude que afetará diretamente a vida de toda a população brasileira. Diante de todas essas irregularidades, em fevereiro de 2023, o presidente Lula solicitou à Advocacia-Geral da União a revisão das regras de privatização da Eletrobrás.
O custo tende a ser repassado para o preço final das mais diversas mercadorias
A privatização da Eletrobrás também representa perder o controle sobre o enorme volume de água doce estocada nas barragens das hidrelétricas e de grande parte das linhas de transmissão do país, ou seja, o controle da distribuição de energia. Além disso, foi estabelecido no texto que uma parcela da energia adquirida pelo governo deverá vir de pequenas centrais hidrelétricas e de usinas termelétricas movidas a gás natural. Além de serem fontes mais poluentes que as demais, a produção de energia é mais cara, e o custo mais alto é repassado aos preços, encarecendo a conta do consumidor final.
Atualmente, parte da energia produzida é obrigatoriamente vendida a preço de custo para as distribuidoras. Com a privatização, essa regra que vigorava desde 2012 será gradativamente abandonada e a energia será negociada a preços de mercado, o que também aponta para a possibilidade do aumento da conta de luz dos domicílios e do aumento dos preços em geral, afinal, as contas das empresas também ficarão mais caras, e o custo tende a ser repassado para o preço final das mais diversas mercadorias.
Estado refém do capital privado
Com a privatização, o preço da energia elétrica deverá aumentar, e as decisões deverão ser tomadas no sentido de maximizar os lucros dos acionistas, e não mais no sentido de contribuir para o desenvolvimento nacional. O Estado fica refém do capital privado e perde sua autonomia para executar decisões estratégicas que podem impactar o desenvolvimento tecnológico, a produtividade, a estrutura institucional e logística, enfim, os fatores relevantes para a construção de uma economia que seja acima de tudo geradora de empregos decentes e redutora de desigualdades em todos os níveis.
Outro ponto importante é que a Eletrobrás pode ter um papel fundamental para pavimentar os caminhos da transição energética, da mesma forma que pavimentou o caminho da oferta energética abundante desde sua criação. Assim, a empresa precisa assumir o protagonismo na pesquisa e no desenvolvimento tecnológico do setor elétrico, com foco nas energias renováveis.
O Brasil já é um dos países do mundo com maior percentual de utilização de energia renovável em sua matriz elétrica, dada a grande participação das hidrelétricas na produção nacional. O desafio atual é seguir dando prioridade às energias renováveis, porém de forma mais diversificada, uma vez que a hidrelétrica fica vulnerável à variação do nível dos reservatórios além de causar grandes impactos socioculturais e ambientais na instalação de novas estruturas.
Transição energética
A geração de energia solar e eólica cresceu muito na última década no Brasil. Segundo informações da Associação Brasileira de Energia Eólica, atualmente a energia hidrelétrica é responsável por 54,6% da matriz elétrica brasileira, enquanto a energia eólica é responsável por 12,3%, e a fotovoltaica, por 3,9%. Ainda que o setor privado venha desempenhando bem o papel de produção da energia eólica e solar, é sabido que a inovação e o desenvolvimento tecnológico raramente ficam a cargo da iniciativa privada.
O investimento em pesquisa é caro e de alto risco, porque não se sabe se ou quando a pesquisa chegará a um resultado satisfatório. Nesse sentido, dado que o Brasil reúne todos os recursos necessários para o desenvolvimento do setor (sol e ventos em abundância, infraestrutura, mercado consumidor etc.), é preciso que a Eletrobrás possa cumprir seu papel de colocar o setor energético em seu lugar estratégico, firmando parcerias com as universidades e empresas, e coordenando um grande esforço de pesquisa que culmine em uma geração de energia cada vez mais barata e eficiente.
Como exemplo, duas frentes tecnológicas que merecem mais atenção: a instalação de usinas de geração heliotérmica e o potencial de armazenamento de energia do hidrogênio verde.
A meta deve ser reduzir desigualdades
Além disso, cabe refletir sobre o fato de que a região Nordeste é a grande produtora de energia eólica e solar do Brasil, e parte da população mais pobre do país está nas regiões onde se concentram a instalação desses empreendimentos. O Estado poderia, por meio da Eletrobrás, elaborar uma proposta que permita que essa energia, cujo custo de produção é o mais barato dentre as alternativas atuais, seja vendida a preços compatíveis com o seu custo reduzido e distribuída aos domicílios nordestinos mais vulneráveis com tarifas também reduzidas.
Outra questão que vem sendo historicamente negligenciada no país quando há instalação de grandes empreendimentos, sejam públicos ou privados, são os impactos que esses causam sobre a vida da população local. A presença dessas empresas não pode se constituir como mais um fator que contribui para o conflito fundiário e a fragilização da população rural mais vulnerável.
É preciso construir uma regulação capaz de contemplar estratégias que realmente auxiliem às empresas para que essas deixem um legado positivo no território. A regulamentação precisa também atualizar os subsídios dados às fontes renováveis, para níveis que sejam compatíveis com a lucratividade atual do setor, que assistiu a uma expressiva redução de custos de produção na última década.
E, para que seja inclusiva, a gestão do sistema elétrico deve reconhecer que o funcionamento do setor pode contribuir para minimizar ou agravar questões centrais para a cidadania, seja de forma direta ou indireta. A energia é um insumo básico para qualquer produção, seja ela doméstica ou industrial, de pequeno ou grande porte, de qualquer setor.
Quanto menor o custo desse insumo, maior a capacidade das pequenas e grandes empresas de gerar empregos e produtos a preços adequados, o que é ainda mais essencial num contexto em que o desemprego (e a proliferação de trabalhos precários) e a inflação contribuem para o agravamento da pobreza e da insegurança alimentar no país.
Além disso, o acesso doméstico à energia somente pode ser de fato considerado universal se, além de estar conectado a uma rede de distribuição, o domicílio tiver condições de pagar pelo serviço. Nesse sentido, a energia precisa ser barata, especialmente para consumidores de baixa renda, e os governos precisam ter meios (como a possibilidade de conceder subsídios e regular tarifas) para garantir que isso aconteça. Quanto maior a parcela da renda dos pobres que é gasta com energia, menor será a parcela destinada, por exemplo, à alimentação.
É a oportunidade de fazer uma transição energética que seja realmente justa e sustentável.
Renata Guimarães Vieira é doutora em economia e membra do Instituto Economias e Planejamento (IEP)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa