Ex presidente fragilizou enfrentamento e difundiu preconceitos
Em 1988 o Estado brasileiro lançou as bases do Programa Nacional de Controle de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS. Pressionado por militantes de diversos movimentos sociais, o planejamento público em torno desse Programa no SUS se tornaria uma referência para diversos sistemas de saúde no mundo. De lá para cá, construiu-se no SUS a possibilidade de se realizar os exames laboratoriais e testes rápidos necessários à detecção do HIV em cerca de 30 minutos, além de ser possível acessar os cuidados e medicamentos necessários para o tratamento gratuitamente na rede pública.
Neste momento de balanço das repercussões da pandemia da covid-19 no âmbito social, político e econômico é necessário identificar, no entanto, as reconfigurações, e, sobretudo, os apagamentos em torno a uma epidemia ainda distante de controle no cenário global e nacional.
A reflexão em torno do enfrentamento à Aids tem relevância, posto que singulares transformações já estavam em curso ao longo da década mais recente e algumas muito possivelmente se intensificaram durante o período de crise sanitária mundial. O apagamento da memória de uma política pública de incontestável sucesso mundial pareceu se consolidar com a renomeação em 2019 do antigo Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais pelo atual Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI). Isto apenas para mencionar um de vários outros gestos de invisibilização da palavra Aids e tudo o que esta representa, somado ao silenciamento de corpos e identidades não alinhados aos moldes heteronormativos nas campanhas de prevenção.
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No período inicial da pandemia da covid-19, o temor das pessoas vivendo com HIV e Aids perante a potencial escassez de medicamentos e pelas dificuldades de acesso aos mesmos em decorrência do lockdown teve significativos impactos afetivos e efetivos. Nesta conjuntura, atravessada por múltiplos sofrimentos e incertezas, observamos a recriação de pânicos morais em torno do vírus e dos sujeitos que convivem com ele em pelo menos dois momentos.
O primeiro, em razão das declarações do ex presidente Jair Bolsonaro em fevereiro de 2020, que sustentavam a ideia de que pessoa com HIV é despesa para todos no Brasil. O segundo também se relaciona às palavras do ex-presidente, quem disseminou em outubro de 2021 a falsa informação de que tomar a vacina da covid-19 aumentaria o risco de uma pessoa se infectar com o vírus que causa a Aids.
Ao recrudescimento do estigma, alavancado pela expansão de visões conservadoras, se soma a preocupante notícia de novembro de 2022: a redução do orçamento federal em mais de R$ 400 milhões destinados à aquisição de medicamentos para a Aids, infecções sexualmente transmissíveis e hepatites virais. Fato que além de ameaçar à vida das pessoas vivendo com HIV e Aids também reduz o potencial das estratégias de prevenção pautadas na dispensação de medicamentos antirretrovirais (especialmente as profilaxias Pré e Pós exposição, Prep e Pep).
Após 40 anos de epidemia de HIV/Aids e perante o horizonte que se abre com o governo atual, de reconstrução da saúde como parte de um projeto de cidadania plena é preciso nos perguntarmos: quais as reconfigurações de uma política de histórica relevância no âmbito do SUS? E sobretudo, como se reverterá o quadro de erosão e insegurança para indivíduos e comunidades usuárias dos serviços de assistência e prevenção à Aids e demais infeções sexualmente transmissíveis?
Ações contundentes de restauração dos direitos sexuais e reprodutivos acenados pelo Ministério da Saúde nesse ano têm enorme significado e, sem dúvida, desdobramentos práticos. Por exemplo, o destaque para o respeito à diversidade e a enunciação do preservativo como alternativa para a prevenção na estratégia de comunicação oficial do Carnaval 2023 são gestos que anunciam uma retomada de princípios e de políticas, fruto de históricas pactuações intersetoriais e da persistência do ativismo de enfrentamento à Aids.
In memoriam a Jorge Beloqui, professor sênior do IME/USP e ativista dos movimentos em defesa das pessoas vivendo com HIV/Aids.
Claudia Mercedes Mora Cárdenas é professora do Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
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Edição: Elis Almeida