O governo Lula se apresenta como uma tentativa de recompor o Estado nacional soberano
Em intervenções recentes, o filósofo Paulo Arantes e o antropólogo Gabriel Feltran chamaram a atenção para a “contrarrevolução dos jagunços”, como diz Feltran, essa revolta seria a gradual perda de controle por parte do Estado sobre as forças militares e suas extensões paramilitares.
Segundo ele, essa camada das forças militares brasileiras está se descolando das elites tradicionais, que a utilizava para exercer sua dominação sobre o país. No período recente, as médias e baixas patentes das forças militares gradualmente se misturaram com o crime organizado, estabelecendo o controle direto e violento sobre territórios.
Tanto Feltran quanto Arantes estão corretos em chamar a atenção para esse fenômeno. De fato, a capacidade de ação do Estado é enormemente diminuída quando parte das forças militares estão em revolta contra o mesmo, assumindo o controle de partes do território. No entanto, entendo que a “contrarrevolução dos Jagunços” não é um processo exatamente novo, mas é apenas parte do fortalecimento dos grupos de grandes “piratas” que atacam e tentam se apropriar de pedaços do Estado brasileiro.
A contrarrevolução dos jagunços vem em um momento em que as elites tradicionais abandonaram qualquer projeto de construção do Estado nacional e partiram para a pilhagem pura e simples. Enquanto se refestelavam na coisa pública em níveis sem precedentes, os grandes piratas autorizaram, explícita ou implicitamente, que os jagunços do andar debaixo também aproveitassem enquanto mantinham a população trabalhadora sob controle.
Bolsonaro “liberou geral” a pirataria
O governo Bolsonaro foi um grande momento de “liberou geral” para a pirataria no Brasil. A nata da pirataria nesse período pode ser dividida em quatro “confrarias”, com claras interseções entre elas (e, claro, com diversos conflitos internos): primeiro, temos as lideranças do próprio bolsonarismo enquanto movimento de massas. O bolsonarismo estabelece uma hierarquia de possibilidades de abuso do poder e da esfera pública e também da população. No topo, o próprio clã Bolsonaro se refestelava em joias e cartão corporativo. As joias e presentes de alto valor, dada a frequência com que eram recebidos pelo presidente, apontam para algum tipo de propina.
A segunda confraria é a dos militares de alta patente. Estes se apropriaram da máquina pública a partir da falta de quadros do movimento bolsonarista – movimento que, em larga medida, eles próprios gestaram. Ocuparam o alto escalão do governo e as estatais para receber salários polpudos. Também se aproveitaram de suas posições para fechar contratos gordos e suspeitos de prestação de serviços para o governo. Por fim, mesmo sendo os maiores culpados, escaparam ilesos da reforma da previdência.
A terceira confraria de piratas são os especuladores, nacionais e estrangeiros. Liderados por Paulo Guedes, altos funcionários do governo Bolsonaro se aproveitaram da porta giratória: enquanto estavam no governo, organizaram privatizações a preço de banana; depois saíam para trabalhar nas empresas que adquiriram os ativos. O butim foi especialmente grave na Petrobrás, carro-chefe do investimento público brasileiro: a Petrobrás passou por uma “privatização por dentro”, com vendas de ativos rentáveis por preços baixos e, no caso mais surreal, o aluguel da infraestrutura privatizada por um preço exorbitante. Os retornos das vendas foram distribuídos em forma de dividendos sem comparação, mesmo entre petroleiras.
A quarta confraria de piratas é o “Arenão”, grupo de parlamentares e políticos de direita que se agrupam nos partidos herdeiros da Arena. Os parlamentares do Arenão se aproveitaram dos crimes em série de Bolsonaro para assumir controle da agenda legislativa brasileira sob a batuta de Arthur Lira. Seu projeto de poder consiste na “privatização” dos canais de atuação do governo federal. Especialmente com o orçamento secreto, esses parlamentares passaram a ser o principal eixo de decisão sobre quem recebe e quem não recebe recursos públicos.
Essa situação não é exatamente nova. A combinação entre militares, especuladores extrativistas e barões da política local é um bom resumo da história do Brasil. O que é o governo Temer, senão uma união das três confrarias da pirataria mais antigas praticando algum grau de civilidade? O novo elemento é justamente o bolsonarismo, que amplificou o grau de depredação do patrimônio e da esfera pública ao finalmente conectar nossas elites predatórias a um movimento de massas que usa e abusa do pânico moral e religioso e do discurso de empreendedorismo no mundo da lei do mais forte.
Contexto com Lula
Nesse cenário, o governo Lula se apresenta como uma tentativa de recompor o Estado nacional soberano. Esse processo tem que se dar em diversas camadas: primeiro, na recomposição do aparato estatal dilapidado, recompondo políticas públicas e a capacidade de ação do Estado.
Segundo, no realinhamento dos entes federados com o Estado soberano e não com os poderes locais. Esta, certamente, será uma tarefa difícil, mas esperamos que iniciativas como a reforma tributária e os
investimentos em obras prioritárias para os estados realinhem a atuação dos governadores, apesar das diferenças ideológicas.
Terceiro, a recomposição das políticas públicas que garantem a autonomia da população em relação às confrarias de piratas: além de garantirem o mínimo de renda para a população pobre, Bolsa Família, Programa de Aquisição de Alimentos, recomposição do valor do salário-mínimo e outras políticas similares são formas de garantir a autonomia da população em relação aos poderes econômicos e políticos locais.
Dada as iniciativas do governo Lula, não surpreende, no entanto, que as confrarias de piratas estejam reagindo. Como tenho descrito aqui nessa coluna, os especuladores se encontram sob o estandarte do Banco Central independente. As taxas de juros elevadas limitam qualquer tentativa de o governo Lula retomar as rédeas da economia. O congresso também está mostrando as garras: Elmar Nascimento (União Brasil), um dos líderes do Arenão, já disse que os cargos liberados pelo governo não serão suficientes.
Mesmo a imprensa empresarial, que resistiu (de forma bastante branda, diga-se) ao governo Bolsonaro, já entrou na fase do “doisladismo”, comparando frases desnecessárias do presidente Lula com a verborragia preconceituosa de Bolsonaro, que deixou mais de 700 mil brasileiros morrerem na pandemia. Essa mesma imprensa joga a culpa das práticas nefastas do Arenão no governo, faz assessoria para golpistas como o senador Mourão e para os merchans de Michelle Bolsonaro. No debate sobre política econômica, a mídia empresarial atua em sincronia fina com o mercado financeiro.
O dilema para as elites que resistiram ao governo Bolsonaro quando este estourou seus limites é que o fortalecimento e reconstrução do Estado será, inevitavelmente, o fortalecimento do Partido dos Trabalhadores e da esquerda. São estas as elites que estavam confortáveis com os piratas enquanto eles abocanhavam apenas uma parte mais modesta do butim no governo Temer. Infelizmente, ao que parece, elas preferem os piratas organizados aos trabalhadores e trabalhadoras organizados.
Pedro Faria é economista e doutor em história. É pesquisador vinculado ao Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG, ao Instituto Economias e Planejamento e militante do Movimento Brasil Popular.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Ana Carolina Vasconcelos