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ChatGPT trará benefícios ou malefícios? Quem controla a inteligência artificial?

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Problema não é a autonomia da tecnologia, mas a orientação do seu desenvolvimento que responde a interesses privados - Foto: Reprodução/ Freepick
Mediador principal da tragédia é o capital, e não a tecnologia

Nos últimos meses temos acompanhado, alguns com justa empolgação e outros com igualmente justa apreensão, os últimos passos da evolução do mais recente e surpreende avanço tecnológico das inteligências artificiais (IAs). Os assim chamados ChatGPT  - que, na verdade, são modelos linguísticos para interação humana - vêem nos provando o real alcance que o desenvolvimento de IAs pode ter no nosso dia-a-dia e na nossa sociedade.

Seja através da produção de imagens digitais, ou pela elaboração de códigos de programação ou ainda pela simples produção textual, esses programas parecem nos trazer mais próximos de realizações que, até muito recentemente, pareciam restritas pela capacidade técnica ou tecnológica de cada um. Sem dúvidas estamos assistindo ao início de uma nova era na possibilidade de democratização do uso da tecnologia.

Ao contrário do que o mantra capitalista entoa, nem todo desenvolvimento tecnológico está fadado a trazer mais benefícios que malefícios no longo prazo, mas esse alerta tampouco é novidade. O avanço tecnológico no capitalismo sempre foi fonte de disrupções e transformações sociais de toda ordem. Entretanto, elas nunca foram mais do que preocupações passageiras e - mesmo quando capital e desenvolvimento das forças produtivas encontram-se em franca oposição - a tecnologia sempre foi um dos pilares de sustentação ideológica do regime: um dia ela tornará a vida boa para todos.

Interrupção de pesquisas

Parece-me, portanto, um tanto quanto surpreendente que o desenvolvimento de sistemas GPT venham causando comoção suficiente para que ninguém menos que Elon Musk, o próprio, tenha assinado uma petição promovida pelo instituto Future for Life que pede pela interrupção das pesquisas na área pelos próximos 6 meses.

O cenário fica ainda mais intrigante quando lemos, na petição, que os signatários acreditam que esse tempo seja necessário para que sistemas de segurança e legislações apropriadas ao desenvolvimento dessas inteligências artificiais sejam desenvolvidas. O liberal brasileiro tem uma síncope: o governo vai regulamentar o desenvolvimento tecnológico? O governo vai dizer o que é seguro ou não é? Poxa vida, quem poderia imaginar dar ao governo uma responsabilidade dessas. E ainda com o apoio do mestre Musk? É um golpe duro.

Mas esse é só o início daquilo que faz com que o nome de Elon Musk nessa petição seja ou um erro (assinou sem ler?) ou uma piada de mau-gosto.


Elon Musk assinou a petição que pede pela interrupção das pesquisas na área pelos próximos 6 meses - Angela Weiss / AFP

Talvez um dos pontos mais desconcertantes para Sir Elon seja a série de perguntas retóricas que aparecem logo no início da carta aberta: “Será que devemos deixar que máquinas inundem nossos canais de informação com propaganda e inverdades? Será que devemos automatizar todos os trabalhos, incluindo aqueles que nos trazem realização? Será que devemos desenvolver mentes não humanas que poderão eventualmente nos superar em número, em inteligência, nos tornar obsoletos e nos substituir? Será que devemos perder o controle da nossa civilização? Tais decisões não devem ser delegadas para líderes tecnológicos não-eleitos”.

A inocência é contagiante se não fosse ultrajante. Parece a fábula de alguém que acabou de acordar de um longo sono pré-capitalista e despertou repentinamente no século XXI. Porque, convenhamos, na melhor das hipóteses, essas perguntas estão ao menos uma década atrasadas, senão muito mais. Máquinas (ou algoritmos) inundando nossos canais de informação com propaganda e notícias falsas parece ter se tornado o ethos da sociedade contemporânea. Certamente é uma das questões prevalentes do nosso tempo, posta e difundida proficuamente pelas redes sociais. Não são poucos aqueles que se ocupam do problema que tem profundas repercussões sociais e históricas.

Extinção de trabalhos

Mas quando o assunto é algoritmos de redes sociais, seus proprietários - incluindo o signatário Elon Musk, dono do Twitter - resistem “bravamente” a qualquer regulamentação em nome da “liberdade de opinião” (enriquecendo no processo por mera consequência). Curioso que, repentinamente, e na forma do ChatGPT, fake news tenha se tornado uma ameaça aos olhos de Musk.

E os riscos da automatização e extinção de trabalhos que é a marca da evolução capitalista desde sempre? A submissão do trabalho a uma lógica externa, sem alma, que controla a vida virou um problema? O descarte inconsiderado de massas de trabalhadores não ganhava o símbolo do progresso? O desemprego estrutural não era uma “oportunidade” para de redescobrir em uma nova função? Por que do escândalo agora? Será que é porque os trabalhos ameaçados não são mais os “reservados” aos trabalhadores não-brancos de baixa remuneração, mas aqueles considerados altamente especializados e prestigiados como programadores, médicos e advogados? Seriam estes os trabalhos que nos trariam realização? Que realização? Realização para quem?

Trabalhadores largados à própria sorte por causa de bruscas mudanças tecnológicas nunca foi novidade e muito menos pauta de preocupação. O que mudou? Até ontem, substituir motoristas por carros autônomos era a última tendência do mercado muskiano. Estranho.

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Civilização sem controle

Que dizer então do risco de perder o controle da nossa civilização? Nunca nem soube que estávamos no controle! Parece em controle uma civilização que produz e reproduz desigualdades e exclusão social em escalas cada vez maiores? Parece em controle uma civilização que anda a passos largos para um colapso ambiental que fará ruir a si mesma? Parece em controle uma civilização que não consegue planejar um uso um pouco mais racional da sua atividade econômica do que o acúmulo infinito de capital ou os caprichos de uma viagem suborbital ou a colonização de outro planeta?

E, ainda assim, Elon Musk - que não possui nenhuma responsabilidade sobre nenhuma dessas questões, é claro - demarcou como o desenvolvimento do ChatGPT como o grande marco de risco do controle da nossa bela, sempre próspera e justa civilização. Comovente.

Para fechar com chave de ouro, é impossível que tenha escapado à Elon o ultimato de que essas decisões não devem ser relegadas à líderes tecnológicos não-eleitos. Ou será que o dono da Tesla achou que não era com ele? Ou será que o problema é que não é ele o líder tecnológico não-eleito com a bola da vez? Seria possível que Musk, esse grande homem de visão, tenha pedido uma pausa no desenvolvimento das inteligências artificiais só para ter tempo suficiente para ter uma IA para chamar de sua no mercado bilionário e ultracompetitivo como o do setor tecnológico? Talvez seja demais ver não mais que motivações financeiras e ideológicas nesse grande barão da tecnologia. Seria?

Se ao menos para isso, a carta aberta pela interrupção do desenvolvimento de ChatGPT, nos presenteou com essa pérola da coerência ideológica capitalista. Não duvido que os membros do instituto Future of Life possam estar legitimamente preocupados com o futuro das inteligências artificiais ou mesmo que tenham razões para tal. Que ninguém se engane achando que estou desmerecendo as iniciativas que busquem avaliar os riscos e controlar as consequências negativas do desenvolvimento de inteligências artificiais. A questão é séria e urgente.

Tecnologia, dominação e exploração capitalista

Entretanto, a presença de Elon Musk como signatário de tal iniciativa nos faz acordar do canto da sereia que tenta pautar o problema através do coadjuvante e não do ator principal: o problema não são os poderes autônomos da tecnologia, mas a orientação do seu desenvolvimento que responde não aos interesses públicos, mas aos interesses da acumulação capitalista. Que o processo de desenvolvimento tecnológico esteja fora do nosso controle é mera consequência do fato de que a reprodução social, em geral, está fora do nosso controle. Nos últimos 200 ou 300 anos, nunca esteve!

Problema não é a autonomia da tecnologia, mas a orientação do seu desenvolvimento que responde a interesses privados

Toda preocupação com o futuro da tecnologia que não passe pela compreensão e crítica dos sistemas de dominação e exploração mediados pelo capital e seus detentores possui um alcance limitado, perde completamente o ponto decisivo, além de oferecer um espaço de escape ideológico para quem realmente tem o poder e a responsabilidade sobre os caminhos da tecnologia.

Ao fim e ao cabo, não será uma carta aberta de pesquisadores bem-intencionados e bem instruídos que definirá o futuro da tecnologia GPT, mas os interesses de reprodução e acumulação de capital no setor de tecnologia. Bem como não serão os valores morais ou as convicções pessoais dos ditos “líderes tecnológicos” que vão determinar a continuidade ou não do desenvolvimento de uma tecnologia (por mais perigosa que seja).

O mediador principal da nossa tragédia continua a ser o capital, e não a tecnologia. O nome do jogo é capitalismo.

Marcos Gustavo Melo é graduado em Economia, mestre em Geografia e doutorando em Economia. Pesquisador de economia política e história do pensamento econômico e membro do Instituto Economias e Planejamento

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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Edição: Elis Almeida