Minas Gerais

DITADURA

Argentina é exemplo em punição aos crimes da ditadura, mas Causa Villazo mostra morosidade

Embora a Argentina seja exemplo de punição a torturadores, ainda há genocidas que conseguem escapar de condenações

Villa Constitución - Argentina | Brasil de Fato MG |
Em 16 de marco de 1974, no sul de Santa Fé, na Argentina, se realizava uma massiva mobilização em marco de uma das lutas sindicais mais importantes da história do país. - Foto: Arquivo público

Ao caminhar pelas ruas de Buenos Aires você pode se surpreender com algum azulejo em esquinas, calçadas e até prédios públicos que marcam onde ocorreram sequestros durante a ditadura cívico-militar. No coração da cidade, em frente à Casa Rosada, todas as quintas-feiras é possível se somar às Mães da Praça de Maio. Elas, há 45 anos marcham em ronda na Praça de Maio, em memória dos filhos desaparecidos e a espera de justiça.

1.100 repressores da ditadura foram julgados na Argentina

Com os esforços de movimentos populares foi possível conseguir até um feriado nacional, decretado em 24 de março, data do golpe militar, que permite que milhares de pessoas saiam em marcha às ruas em busca de verdade e em claro protesto pela falta de justiça.

Apesar de quase todos os países da América Latina ter vivido a mesma película, submetidos por décadas aos horrores dos sangrentos regimes militares, a Argentina iniciou um filme diferente de seus hermanos puxando fila na retomada da democracia. O premiado longa-metragem “Argentina: 1985”, exemplifica bem esse processo: nove líderes das três primeiras juntas militares que governaram o país após o golpe de Estado de 1976 foram condenados.


Imagem da manifestação de Sana Fé, de 1974 / Foto: Arquivo público

Em paralelo, no Brasil, até hoje genocidas e torturadores continuam impunes. Mesmo com o exemplo do vizinho latino, a impunidade encontrou por aqui novos caminhos para se perpetuar, protegidos pela Lei da Anistia.

Causa Villazo

Na Argentina, a resistente luta dos sobreviventes da causa Villazo é um exemplo de obsessão por justiça. Esses sobreviventes, seus familiares e os organismos de direitos humanos clamam pela responsabilização dos responsáveis por genocídios, crimes de privação de liberdade, homicídios e torturas cometidos contra trabalhadores, ativistas sociais e moradores da Villa Constitución, que protagonizaram a causa Villazo.

Porém, ao contrário do dito popular, que diz que a “justiça tarda, mas não falha”, eles temem não conseguirem participar do juízo da causa que são protagonistas. Após 48 anos do início da repressão e quase uma década depois do início das investigações, quase todos os sobreviventes da causa já estão em idade avançada e não sabe até quando terão forças para esperar por justiça.

“Os tempos da justiça não são os tempos nossos. Não são os tempos dos trabalhadores. Por isso, é importante que sigamos insistindo para que não se volte a repetir o 20 março e que nos apoiem em nossa causa”, afirmou o sobrevivente Juan Actis e uma das referências da Lista Marrón. No último 20 de março, ele se juntou novamente a outros sobreviventes em protesto em frente ao Tribunal de Justiça de Rosário, em Santa Fé, para exigir o início imediato do julgamento.

A data do ato foi escolhida por ser o dia em que começaram os crimes de lesa humanidade em Villa Constitución. As violações cometidas ainda no governo democrático de Isabel Martínez de Perón, em 1975, foram um ensaio para a ditatura que se instaurou no ano seguinte e deixaram um triste saldo de mais do 30 assassinados e mais de 300 trabalhadores privados da liberdade e torturados.


Familiares, sobreviventes, ativistas sociais e de direitos humanos pedem marcação de data do juízo, em ato realizado em frente ao tribunal de Rosário, na Argentina, em 20 de marco. / Foto: Ivan Bonicci

Para a advogada da Assembleia Permanente por Direitos Humanos da Argentina APDH, Gabriela Durruty, que representa organização, familiares e sobreviventes, essa causa, assim como todas de lesa humanidade, costumam ser mais difíceis e precisam de uma luta especial. “O problema em todos os julgamentos, em geral, não é que se façam lograr, o que se fazem é torná-lo mais lento, o que em muitos casos equivale a impunidade. Quando fizemos a primeira denúncia, havia muitos companheiros que agora não estão”, afirmou Gabriela durante ato de 20 de março. Ela impulsiona a causa junto aos advogados Jésica Pellegrini, Julia Giordano e Federico Pagliero.

Sobreviventes

Dos sobreviventes desse episódio, 67 casos foram incluídos, em 2013, no processo que dá início a uma longa batalha judicial para a condenação dos genocidas e torturadores. Desses, 13 já faleceram sem poder ter sua história reparada e contada oficialmente perante o tribunal.

Em carta endereçada a um dos juízes que acompanham a causa, Juez Marcelo Bailaque, sobreviventes e familiares já denunciavam, em 2021, as consequências da morosidade dos trâmites.

"Lamentamos a perda de alguns de nossos companheiros e companheiras que sofreram na prisão política e tortura, companheiros e companheiras que não poderão viver aquele momento único de escrever a história, julgar alguns dos responsáveis ​​e erradicar a impunidade. Não podemos esquecer que é o Estado argentino, neste caso representado por você que tem a obrigação de buscar reparação para as vítimas e os parentes do Terrorismo de Estado”, escreveram. 


Familiares e sobreviventes manifestam / Foto: Ivan Bonicci

A grande maioria dos sobreviventes que se encontram em vida tem mais 70 anos, sendo que alguns estão lutando contra enfermidades graves. Ao menos três dos 70 sobreviventes  incluídos no processo estão com saúde muito debilitada, de acordo com requisição judicial apresentada em 20 de março na qual solicita a  marcação de uma data para o julgamento.

Entenda

A “causa” começou com uma massiva mobilização de metalúrgicos das empresas Acindar, Marathón, y Metcon, que junto a operários, camponeses e comerciantes lutavam contra diretrizes econômicas, intervenções sindicais e defendiam eleições livres para o sindicato dos metalúrgicos (UOM). Esses anseios levaram à ocupação de fábricas e demissões em massa. Os trabalhadores e a população civil se organizaram para resistir e, no dia 16 de março de 1974, em feito histórico, conseguiram o objetivo de recontratar os demitidos e eleger livremente delegados, organizados na chamada Lista Marrón, para a direção da seção do UOM.

Porém, um ano depois, em 20 de março, a repressão chega em escala inimaginável, com a cidade, chamada pelos militares de "a cobra vermelha do Paraná", sitiada por nove forças de segurança e outros parapoliciais. O aparato repressivo ordenado pelo Estado, mudou para sempre a vida dos moradores de Villa e arredores, onde muitos foram sequestrados, torturados dentro da própria fábrica Acindar, um dos primeiros centros clandestinos do país, privados por anos da liberdade ou assassinados de forma brutal, sendo mutilados e queimados.

Impunidade biológica

Com uma década de espera para o início do julgamento, a causa Villazo supera as estatísticas em termos de tempo. Dados da Secretaria de Direitos Humanos da Nação mostram que a média de espera para o início dos julgamentos dos crimes de lesa humanidade são de quatro anos, ou seja, seis anos a menos que em Villazo.

O advogado da APDH, Federico Pagliero, explica que essa causa sofre grande resistência por julgar parte da história de um governo justicialista peronista e por julgar a participação de uma grande empresa como a Acindar. Segundo ele, o processo já avançou para o seu fim e não resta mais nada a fazer senão apenas começar o julgamento, que tem 25 acusados e quase 70 vítimas.

Gabriela Durruty completa que foi preciso brigar desde o primeiro momento. “Fizemos a primeira denúncia e o primeiro que ocorre é que um fiscal de Buenos Aires solicita que a causa transmite lá. Perdemos dois anos para que a causa se acerque ao seu âmbito natural e, assim, possibilite que os sobreviventes estejam perto, ofereçam e produzam as provas, e possam participar das audiências, que obviamente é fundamental”, detalha.


Juan Actis e advogada Gabriela / Foto: Ivan Bonicci

Justica que tarda pode falhar

Na Argentina, os julgamentos de crimes da ditadura foram reabertos em 2004 com Políticas de Estado de Memória, Verdade e Justiça. Isso significa que os repressores passaram 20 anos protegidos pela Lei de Ponto Final de 1986, instituída um ano após o primeiro grande julgamento das juntas militares, e pela lei de Obediência Devida, de 1987, na qual os feitos cometidos pelos membros das forças armadas não eram puníveis por, supostamente, terem agido em virtude de obediência devida.

“As leis de impunidade foram declaradas inconstitucionais, pois os crimes contra a humanidade são imprescritíveis para a Argentina já que nosso país é comprometido com a comunidade das nações para erradicar a impunidade e investigar, processar e punir adequadamente os crimes contra a humanidade. Nosso país aderiu às recomendações da CIDH”, explica Federico Pagliero.

Em torno de 1.100 repressores foram julgados após a inconstitucionalidade das leis de proteção, o que é um avanço em escala exponencial, ainda mais se comparado com os vizinhos da América Latina.

Porém, a lentidão da Câmara Federal de Cassação Criminal e do Supremo Tribunal de Justiça da Nação ainda vem gerando muito exemplos de impunidade entre as causas em julgamento. Um deles, é o caso do empresário Carlos Blaquier, que faleceu em 13 de março do 2023 sem ter sido julgado por crimes contra a humanidade em Jujuy durante a última ditadura.

“A morte impune de Blaquier ocorreu após oito anos de atrasos judiciais que causaram danos irreparáveis ​​ao processo de Memória, Verdade e Justiça levado a cabo pelo Estado argentino, e que deixaram as vítimas, seus familiares e a sociedade sem justiça pelos crimes contra Blaquier”, avalia o advogado da APDH.

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Organizações avançam por justiça

Mesmo com todos os entraves, os hermanos continuam na vanguarda da reparação e justiça. Houveram, por exemplo, avanços em muitas sentenças em relação ao julgamento do alto comando, como a condenação de Jorge Rafael Videla, general argentino e ditador entre 1976 e 1981, que morreu na prisão.

Para a licenciada em história Victoria Caminos e estudiosa da causa Villazo, a consolidação e reivindicação da Memória, da Verdade e da Justiça ao longo destes 40 anos de democracia, está intimamente ligada à luta incessante das Mães, Avós da Praça de Maio, da Organização dos Direitos Humanos e dos partidos políticos.  “Eles  foram delineando e marcando um caminho para construir um consenso social para reparar parte dos danos causados e punir os responsáveis pelos crimes cometidos durante a ditadura militar”, avalia.

Outra conquista judicial foi o julgamento também do baixo comando, que era composto por forças de trabalho genocida, os chamados mobs, julgados por meio do reconhecimento dos sobreviventes sobre seu envolvimento. Por outro lado, ainda é possível assistir a um cenário de dificuldades, entraves burocráticos e judiciais que fazem com que também se tenha impunidade para muitos atores-chaves do genocídio da gestão intermédia, que são de responsabilidade civil empresarial e eclesiástica.

Por isso, a licenciada em história Victoria Caminos reforca que a luta deve continuar multiplicando Memória, Verdade e Justiça, “tendo como símbolo o lenço branco, e a presença nas ruas com o compromisso de semear a luta como bandeira para as gerações futuras”.

Karla Scarmigliat é jornalista formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, vive na Argentina, onde acompanha as causas de lesa humanidade

Edição: Elis Almeida