Uma jovem brumadinhense resolveu arregaçar as mangas e analisar o acordo entre a mineradora Vale e o governo de Minas, após o rompimento da barragem Córrego do Feijão, em Brumadinho, em 2019. Uma série de entrevistas e muito trabalho junto às famílias vítimas do crime se transformou no livro "O preço de um crime socioambiental”, que terá um dos lançamentos em 13 de maio, em Belo Horizonte.
A partir das 8h30, o Teatro São João Paulo II (prédio 30), no Campus Coração Eucarístico da PUC Minas, recebe cerca de 400 lideranças da Bacia do Paraopeba. Familiares de vítimas, quilombolas, indígenas, trabalhadores, agricultores familiares que participaram tanto de entrevistas quanto da construção do livro.
A programação conta ainda com Guardas de Congado e Moçambique, Folia de Reis, Banda de Música e Coral infantil de Brumadinho.
Mais sobre o livro
Antes uma adolescente que sonhava em trabalhar na Vale, Marina Oliveira teve sua visão transformada a partir de 2019. “Como a maioria dos brumadinhense, a gente sempre teve muito respeito com a Vale. Todo mundo andava com os uniformes com muito orgulho”, conta.
O ponto de virada aconteceu com o rompimento da barragem Córrego do Feijão, da Vale, a poucos quilômetros da sua casa. O crime-tragédia que em poucos segundos engoliu estruturas da empresa e matou 272 pessoas, mobilizou toda a comunidade do entorno no apoio às buscas, aos familiares e às populações que foram atingidas pela lama ou perderam estradas, acesso à água e outros serviços básicos.
“De maneira voluntária com meus amigos e com organizações de igrejas locais, a gente começou a se organizar em equipes. Nos deparamos com casos desde buscar corpos até cuidar de pessoas que perderam tudo”, relembra Marina.
O livro "O preço de um crime socioambiental” traz o conhecimento desses bastidores ao longo dos anos, e registra, as demandas das comunidades para que recebam reparação aos seus direitos violados. Também analisa entrevistas realizadas com o Ministério Público de MG, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado, Advocacia Geral do Estado, o Comitê Pró-Brumadinho, o Poder executivo do Governo Zema e a Diretoria de Reparação Especial da Vale, além de movimentos populares e igrejas que acompanham essa situação.
A análise das entrevistas mostra que o acordo bilionário feito entre instituições de Justiça, governo de Minas e Vale não levaram os interesses dos atingidos em consideração. O que leva a pergunta: se o acordo não considera os interesses dos atingidos, considera os de quem?
Essa é uma pergunta fundamental do livro que Marina lança com o apoio dos atingidos e de movimentos populares. Ele pode ser adquirido neste link.
Confira a entrevista com a autora na íntegra:
Brasil de Fato MG: Marina, antes do rompimento da barragem da Vale você já era envolvida com questões sobre a mineração?
Marina Oliveira: Não, muito pelo contrário. Como a maioria dos brumadinhenses, a gente sempre teve muito respeito com a Vale. Todo mundo andava com os uniformes com muito orgulho e eu, inclusive, sonhava em trabalhar na Vale. Porque eram os empregos que tinham salários menos piores. Geralmente a Vale contrata pessoas da comunidade para fazer trabalhos que são mais perigosos e com menor remuneração. Os “bons cargos” eles importam, os profissionais vêm de fora do país, de São Paulo, Rio de Janeiro. Mas mesmo assim, são bons salários na média da cidade.
Eu estudei a vida toda em escola pública e até participei de projetos financiados pela Vale. Era um projeto de juventudes e lideranças e a gente se encontrava com jovens lideranças do ensino fundamental de Minas Gerais inteira. Falávamos sobre vários assuntos interessantes: gênero, raça, sustentabilidade, responsabilidade socioambiental. A única coisa que a gente nunca falou era justamente sobre os impactos da mineração, que eu só comecei a aprender após o rompimento da barragem de Córrego do Feijão.
Porque mesmo depois do rompimento da barragem em Mariana [pertencente a Samarco, que é de propriedade da Vale e da BHP Billiton, em 2015] eu não consegui entender a complexidade do que significava. Eu sabia que tinha sido um crime, mas não entendia por completo as violações dos direitos humanos implicados nisso.
Como você se envolveu com a mobilização das famílias atingidas?
Depois que rompeu a barragem, de maneira voluntária com meus amigos e com organizações de igrejas locais, a gente começou a se organizar em equipes de quem recebia doações, quem ia nas comunidades ver o que estava precisando, e começamos a entender. Nos deparamos com casos desde buscar corpos até cuidar de pessoas que perderam tudo, família, roupas, casa.
As demandas de quem foram contempladas no acordo?
Aí, começamos a aprender as funções do Ministério Público, pegar demandas e criar um fluxo com essas instituições de Justiça, participar de muitas reuniões com assessoria técnicas, jornalistas, universidade, consultoria terceirizada, enfim, muitas reuniões!
Nesse período, comecei a fazer parte da equipe da Arquidiocese que se formou, de acompanhamento das comunidades. A gente percebeu que a igreja ia precisar ter uma equipe de acompanhamento local, porque não tinha como retomar a vida como ela era antes do rompimento da barragem. Pelo contrário, entendemos que não ia ser simples.
Várias igrejas se tornaram pontos de doação, onde guardávamos donativos, água e roupa. A igreja do Córrego do Feijão virou a sede das buscas do Corpo de Bombeiros. Na igreja do Parque da Cachoeira fizemos um refeitório para os voluntários. Toda a estrutura que tínhamos, usamos como apoio às comunidades.
Por acompanhar a situação de várias comunidades atingidas, eu comecei a identificar estratégias da empresa que se repetiam. No início, eu achava que eram coincidências os conflitos que surgiam em algumas comunidades, a cooptação, a perseguição e ameaças. Até que comecei a ver toda a estratégia corporativa se repetindo e fui percebendo como a empresa tinha um modus operandi muito organizado.
Por exemplo, a empresa tem uma diretoria de reparação especial com dezenas de funcionários, o que mostrou que seria cada vez mais importante que a comunidade também se organizasse.
O contato diário com as comunidades, o conviver com as demandas e ajudar a organizá-las para remeter ao poder público, foi me ensinando o que eram as demandas de reparação. Infelizmente, toda a experiência que estávamos construindo com as comunidades, inclusive com as instituições de justiça, foi atropelada porque ficamos sabendo - pela mídia - que o governo do estado estava fechando um acordo bilionário com a Vale. Ficamos indignados e só tivemos acesso ao texto do acordo já ao final da negociação.
É essencial transformar o luto em conhecimento para outras comunidades
Nós, atingidos, estamos acostumados a ser tratados por vários atores como se a gente fosse “menos inteligente”. É comum dizerem: “ah, as comunidades atingidas falam com o coração, é muita emoção. Elas não conseguem fazer uma análise técnica e crítica porque é muito trauma. As comunidades são muito agressivas, não têm capacidade de sentar na mesma mesa com o estado”.
A gente é sempre rotulado como “emocionados”, “burros”, “agressivos” e “não tem capacidade técnica”. E nós temos pessoas no território muito qualificadas, desde o cuidado com a terra, até o cuidado com a saúde humana. Temos médicos, pessoas formadas em universidades renomadas, pessoas que dominam saberes científicos e saberes populares, que não são menos importantes.
A partir daí, eu pensei o quanto era importante sistematizar, a partir das experiências dos territórios, qual era a nossa visão sobre o acordo. Pra mim estava óbvio que estava sendo construído como um acordo de reparação, mas as demandas das comunidades não estavam previstas. Então, o que está previsto nesse acordo e a quem beneficia?
Existe, por exemplo, a demanda da comunidade de disputa da narrativa. A Vale tem muita influência nas mídias empresariais, e no acordo não tem um centavo para a comunicação popular, para fortalecer a narrativa e memória das comunidades em relação ao crime. As comunidades querem a responsabilização criminal, elas querem que isso nunca mais aconteça, e no acordo não tem um centavo para fiscalização de barragem, em um estado que a gente tem 40 barragens instáveis que podem romper a qualquer momento.
No subtítulo, você chama atenção para os "bastidores" do processo de reparação. Por que bastidores?
Eu escolhi essa palavra justamente porque o acordo foi construído a portas fechadas. A metodologia que eu usei no mestrado, e que foi transformado em livro, foi uma metodologia de observação participante, quando o pesquisador participa dos processos junto aos envolvidos. Tive a oportunidade de fazer entrevistas com várias comunidades, mas também todas as instituições de Justiça que participaram do acordo, inclusive a que resolveu não assiná-lo, que foi a Defensoria Pública da União.
Escritora entrevistou instituições de Justiça, governo, Vale e comunidades
Tem entrevistas com o Ministério Público de MG, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado, Advocacia Geral do Estado, o Comitê Pró-Brumadinho, o Poder executivo do Governo Zema que liderou esse acordo e a Diretoria de Reparação Especial da Vale, desde o alto escalão até funcionários. Além disso, movimentos populares e igrejas que acompanham essa situação.
O objetivo era entender quais eram os interesses e demandas de cada um, e a partir disso analisar: as demandas de quem foram contempladas no acordo?
A palavra bastidores tem esse duplo sentido, por um lado representa aquilo que a gente não teve acesso, por outro lado, pode ser entendida na perspectiva das comunidades.
O seu envolvimento com a luta das pessoas atingidas, e como pessoa atingida, acabou resultando em ameaças à sua própria vida. Isso de alguma forma afetou a escrita do seu livro?
De fato, isso perpassa todo o livro, mas de uma maneira impessoal. Eu tenho plena consciência de que as ameaças, intimidações e difamações que eu recebi não são um caso isolado. Eu conheço dezenas de pessoas que sofrem exatamente as mesmas questões e me considera muito sortuda por ter tido um programa de proteção que me acolheu, me deu abrigo, e me deu condições de cuidar da minha saúde mental e física, e conseguir inclusive escrever esse livro.
E para o futuro, você tem esperança de que Brumadinho e região possam um dia não mais conviver com a exploração minerária?
Apesar da dor, a gente está mais forte
Nesses quatro anos pós-rompimento da barragem a gente teve muitas violações de direitos, a maioria delas até hoje sem resolução. Mas o que a gente tem de mais bonito e potente é a experiência de organização popular das comunidades. Apesar da dor, a gente está mais forte. A gente sabe muito bem que, no nosso estado, especialmente os municípios que são minerados, é difícil o processo de auto-organização. Nessas cidades tem poucas experiências de sindicatos fortes, ou de grêmios estudantis, associações.
A mineração vai entrando e vai controlando espaços, vai criando programas para a educação básica como se fosse política pública, apoiada pelas prefeituras. Eu fui criada para sentir ódio do Estado e gratidão à Vale. O acesso que eu tinha a canetinhas, tintas, cartazes, a esses recursos mais interessantes que muitas vezes não tem na escola pública, era por causa do projeto com a Vale. Eu lembro que eu pensava: “nossa, estou estudando aqui e não tem esse material. Só tenho quando é no projeto da Vale”.
Quando a gente entende que, na verdade, não é bem assim. Que a pior corrupção é a corrupção do setor privado, que pega todas as riquezas e manda para longe, e só deixa sofrimentos, isso sim é o pior tipo de corrupção.
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Logo nos primeiros dias que a barragem rompeu, alguns atingidos da barragem da Samarco em Mariana ficaram tão chocados que vieram a Brumadinho para compartilhar suas experiências e nos ajudar. Isso foi uma das coisas mais bonitas que vivenciei. Hoje, é essencial a gente transformar todo o luto em conhecimento para outras comunidades. O intuito do livro é esse.
Estamos vendo que a repactuação do Rio Doce [rompimento da barragem da Samarco em Mariana, que atingiu toda a Bacia do Rio Doce] está voltando à tona neste ano. E com certeza no que a experiência do acordo de Brumadinho pode contribuir é na certeza de que não importa que o acordo seja bilionário, ou trilionário, se não conseguir responder às demandas do território, não vamos nos sentir reparados. Não é dinheiro que traz reparação, é justiça, é memória, é verdade, é diminuir os danos que temos que conviver até hoje, e isso só é possível com participação popular. Senão, vão cometer os mesmos erros, os mesmos crimes, e as mesmas violações.
Edição: Elis Almeida