O mito Bolsonaro assemelha-se ao arquétipo do profeta
O que faz com que seu parente ou vizinho bolsonarista acredite sem reservas em tudo aquilo que veem no Zap, que seja favorável ao seu mito e que detrate a Lula e ao seu governo?
O que faz com que esses indivíduos acreditem, por exemplo, que sejam Lula e o PT responsáveis pela quebradeira em Brasília no dia 8 de janeiro deste ano?
O que leva a funcionários públicos de carreira, juízes, delegados, líderes religiosos, líderes políticos, empresários, jornalistas, dentre outros a transgredirem os princípios éticos e legais que exigem as suas respectivas atividade e profissões?
O que faz com que um capitão de carreira militar duvidosa, deputado federal do baixo clero, agressivo e preconceituoso nas palavras, saia de sua quase insignificância e se transforme em um mito, um herói a ser seguido?
Seria até motivo de gargalhadas, não fosse um fenômeno político perigoso e complexo e que somente será parcialmente desmobilizado se o compreendermos.
O imaginário social é povoado por mitos
O imaginário é a rede de significações, articuladas logicamente, mas nem sempre fundadas em premissas verdadeiras, que um grupo social, ou mesmo uma sociedade estabelece e que se transforma em sua própria concepção de mundo.
É do plano do imaginário que derivam os juízos de valor e se define o que é real ou não, o que faz ou não sentido. Sendo um campo onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, o imaginário social é povoado por mitos.
Em épocas, por assim dizer, normais, mito e razão convivem (não sem conflito) nesse imaginário, entretanto, há épocas as quais os especialistas chamam de período de efervescência do mito.
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São esses momentos históricos nos quais os indivíduos e a sociedade vivem o mito com tamanha intensidade que, mais que ouvir com atenção a Odisseia, por exemplo, a sociedade entra na narrativa, como se ela embarcasse na nau junto à Ulisses. Ou, no nosso caso, como se parte de nossa sociedade se sentisse como se sentiam os judeus em plena escravidão no Egito
Em política, o mito traduz todo um complexo processo, em uma ideia ou uma imagem simples, facilmente aceita e compreensível e que, fundamentalmente, coloca em movimento. Como afirmou Sorel, o mito é “força motriz”.
Os mitos são narrativas, são histórias envolventes que em geral tratam de temas relacionados ao sagrado, apresentadas de forma dramática, que pinçam da realidade elementos que interessam ao narrador e corroboram para que se acredite em sua veracidade.
Olavo tem Razão
Por seu turno, o narrador deve ser alguém de credibilidade, cujo conhecimento que demonstra ter deixa inequívoca a narrativa. No caso do bolsonarismo, o grande narrador foi o astrólogo, alçado à condição de grande filósofo, Olavo de Carvalho. Este senhor convenceu parcela significativa da sociedade de que estaria em curso no Brasil uma conspiração comunista organizada pelo Foro de São Paulo.
No Brasil, tanto por meio das mídias digitais quanto das tradicionais, forjou-se um clima apocalíptico, de que o país estava caminhando ao comunismo, como Cuba, Venezuela e Bolívia. Que o país estava quebrado e dominado por uma corrupção generalizada, organizada pelo Partido dos Trabalhadores para se perpetuar no poder.
Paralelo à tais mídias e também por meio delas, as pregações religiosas associavam a corrupção, a homossexualidade, a degeneração moral, o feminismo, a destruição das famílias, ao comunismo, enfim, ao completo domínio do mal em andamento no Brasil, aos governos do PT. Essas teorias conspiratórias, como são chamadas, na verdade são mitos conspiratórios.
As funções dos mitos conspiratórios
Desesperadas pelo pavor do comunismo, incitadas ao ódio, entorpecidas por mentiras, iludidas por uma grande trama conspiratória, cujo objetivo básico é o de subtrair-lhes os direitos, como de resto os direitos da sociedade brasileira, grande parte da classe média escolarizada deixou-se encantar e foi seduzida pelo mito da conspiração e pelo herói que tal estratagema engendrou.
O conteúdo apocalíptico das várias mitologias conspiratórias encontra-se no fato de que, elas sempre assinalam a existência de um tipo de conspiração, tramada por uma organização do mal, a fim possibilitar um poder total à uma força maligna. Na evidência de um possível domínio do mal, as “forças do bem” se articulam, não de modo tão benevolente, à espera de seu Salvador.
De modo que os mitos conspiratórios cumprem três funções: fornecem um sistema justificatório eficiente; organizam e mobilizam os “cidadãos de bem” em sua luta contra o domínio do mal, formando o “complô do bem”; e, favorecem o advento do Salvador.
Mito como Sistema Justificatório
Seu esquema justificatório permite aos que foram abduzidos pela narrativa conspiracionista encontrarem sempre explicações plausíveis para os fatos, por mais absurdas que essas possam nos parecer.
Assim, notícias da Globo ou a explicação de um professor sempre estarão sob dúvidas, uma vez que a imprensa, as universidades, as instituições do Estado e outras grandes corporações privadas, fariam parte do complô comunista.
Por sua vez Lula, uma vez abstraído da sua condição humana e transformado em um grande demônio, possuiria poderes sobre-humanos. Ele seria capaz de estar em Araraquara (SP) e, ao mesmo tempo, estar em Brasília coordenado os atentados terroristas.
E, embora as imagens mostrem a turba bolsonarista conclamando, incentivando, financiando e promovendo a baderna, eles rapidamente absorveram a narrativa de que se tratavam de petistas infiltrados. Uma vez que eles, por estarem do lado do bem, nunca cometeriam tamanhas atrocidades.
O leque explicativo que a narrativa conspiracionista permite é amplo, sempre que houver espaço para um, “porém, todavia, contudo”, haverá espaço para que a notícia soe estranha e que esteja repleta de intenções ocultas e sórdidas, diante desse verdadeiro delírio paranoico.
O complô do bem
A imagem do complô demoníaco tem como contrapartida a da santa conjuração. Se existe uma sombra ameaçadora, existe também uma sombra tutelar, e os filhos da luz escolhem frequentemente a noite para travar o seu combate. Só um complô pode derrotar outro complô, de modo que o complô comunista somente poderá ser combatido se enfrentado com as mesmas armas que se acredita que disponha.
De acordo com a narrativa olavista, o Foro de São Paulo e o PT estariam associados ao tráfico de drogas, transportando-as no avião presidencial, à indústria de assassinatos e sequestros e estariam se infiltrando nas instituições de Estado com a finalidade de controlá-las s coloca-las a serviço de suas ideologias.
Nada diferente daquilo que a extrema direita vinha fazendo desde a Operação Lava Jato e que praticou durante seus quatro anos de governo: tráfico de drogas em avião da presidência, cancelamento de CPF de inimigos ou de possíveis delatores e aparelhamento das instituições de Estado.
O salvador
Um salvador sempre se aporta nas situações de desespero, reais ou forjadas. Bolsonaro representa os anseios por ordem, estabilidade, unidade e um forte apego às formas de vida social que se sentem cada vez mais ameaçadas frente às mudanças correntes, principalmente nos costumes.
Entretanto, como estamos no terreno das narrativas, ele deixa a condição de simples executante de uma vontade geral, encarnando-a, em seu sentido religioso mais profundo.
O mito Bolsonaro assemelha-se ao de Moisés ou ao arquétipo do profeta, aquele anunciador dos tempos por vir, que lê na história aquilo que os outros ainda não veem, que é capaz de revelar o que deve ser visto e reconhecido como verdadeiro. Por isso o seguem com tamanha fidelidade.
Desmitificar é urgente!
Pelo seu conteúdo apocalíptico, as mitologias conspiratórias guardam em si um potencial explosivo muito intenso e estiveram presentes no imaginário social que conduziram às grandes guerras civis e às revoluções.
A mais eficaz ficção da propaganda nazista foi a história de uma conspiração mundial judaica. E é justamente no nazismo que o bolsonarismo encontrará o seu antecedente histórico.
Um líder totalitário, munido de uma imprensa totalitária e de uma forte narrativa conspiracionista encontra massas as quais, anos a fio, foram ensinadas a desconfiarem e a odiarem a política e os políticos, eis a combinação explosiva, por ora contida.
Não saberia dar uma receita de como debelar tal mito, dado a sua extensão, uma vez que o vírus do bolsonarismo contaminou boa parte de nossa sociedade, creio que o esforço deva ser coletivo.
Espero sinceramente que a coalizão que elegeu o atual presidente persista e que, def algum modo, os atores políticos mais diretamente envolvidos se imbuam da responsabilidade constitucional que o grave momento exige.
Dimas Antonio de Souza é professor de Ciência Política do Instituto de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Twitter: prof_Dimassouza / Instagram: @prof.dimasoficial
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Leia outros artigos de Dimas Antonio de Souza em sua coluna Vela no Breu, no Brasil de Fato.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Elis Almeida