Liberais igualam Google e Seu João da padaria
Nas raízes da tradição de pensamento liberal, está uma visão bem clara que perpassa o pensamento de grandes pensadores europeus como Adam Smith: o confronto dos grandes interesses econômicos organizados.
Adam Smith, o “pai da ciência econômica” construiu sua obra econômica com o firme propósito de atacar os defensores das grandes companhias coloniais monopolistas como a Companhia das Índias Orientais, que usavam de sua influência no governo para garantir cartas de monopólio e outras bondades do Estado.
O economista político escocês, precursor do liberalismo, advertiu inclusive contra a falsa equivalência entre os carteis de capitalistas e as associações de trabalhadores: os carteis eram formados discretamente, nas salas de chá. Já as associações de trabalhadores, ainda dando seus primeiros passos no século 18, demandavam abertamente melhores salários. Por seu caráter aberto, pareciam mais presentes que os conchavos capitalistas.
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Quando o liberalismo se consolida como um campo político no século XIX, a defesa da competição com isonomia foi associada até mesmo à proteção dos direitos civis e políticos. John Stuart Mill, outro pensador britânico, defendia o direito das mulheres de participarem no mercado de trabalho e na política porque, além de estes serem direitos individuais independentes de gênero, a participação feminina aumentaria a competição e permitiria que grandes profissionais e estadistas mulheres contribuíssem com o público.
Essa característica na origem da tradição de pensamento liberal parece ter sido esquecida quando o liberalismo ascendeu à condição de ideologia dominante ao longo do século XIX, junto com a ascensão da burguesia como classe dominante. A defesa da livre concorrência com isonomia continuou no discurso teórico e ideológico, mas a realidade do poder mudou a atuação. Na condição de ideologia dominante, a defesa da livre concorrência se tornou uma arma na defesa da liberdade de grandes interesses econômicos contra o controle democrático, a organização dos trabalhadores e a fiscalização e regulação estatal.
Esquecer a concentração de poder econômico
A operação ideológica é bastante simples: trata-se de “esquecer” a realidade da concentração de poder econômico e dar ênfase apenas à concentração de poder político. Isto é, grande parte do pensamento liberal se atenta à concentração de poder político no Estado ou em um sindicato, pois estes representam milhões ou milhares, mas trata uma empresa como apenas uma unidade, que representa seus poucos proprietários na competição mercadológica.
É assim que o Google, empresa que monopoliza o mercado de buscas na internet, se torna apenas mais uma empresa qualquer, assim como a padaria do Seu João. Ambos são “apenas” mais uma empresa, operando sob o peso da fiscalização do Estado e as contribuições e direitos trabalhistas impostos por sindicatos.
Toda a análise transcorre como se essas empresas operassem em um mundo ideal de “concorrência perfeita”, para usar o jargão dos economistas. Qualquer um pode entrar no mercado de buscas e desafiar o Google da mesma maneira como pode abrir uma padaria com um pão mais barato e desafiar o Seu João.
Esta operação ideológica permite que, em nome da defesa da competição e do livre mercado, os ideólogos liberais defendam grandes interesses econômicos que atuam para desmontar as proteções e regulações que os impedem de controlar mercados e obter lucros ainda maiores. A defesa do livre-mercado, ao invés de ser defesa da competição isonômica, isto é, competição em que há alguma paridade entre os competidores, se torna a simples defesa da lei do mais forte.
Liberal coerente
Na atual situação do capitalismo global, onde a noção de “concorrência perfeita” é pura ficção e predominam os grandes conglomerados transnacionais, um liberal coerente deveria defender o fortalecimento do Estado, com um serviço público bem treinado e remunerado para regular os excessos das megacorporações.
O liberal coerente também deveria defender o fortalecimento dos sindicatos, para que os trabalhadores tenham um mínimo de paridade de armas contra as megacorporações.
No entanto, não devemos nutrir esperanças de que muitos liberais percebam o problema. Alguns são muito bem pagos para não perceber. Talvez o liberal defensor da busca pela verdadeira concorrência perfeita seja tão ficcional quanto a concorrência perfeita que dizem perseguir.
Pedro Faria é economista e doutor em história. É pesquisador vinculado ao Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG, ao Instituto Economias e Planejamento e militante do Movimento Brasil Popular.
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Leia outros artigos de Pedro Faria em sua coluna no jornal Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida