Na semana passada, o comitê da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre tortura divulgou algumas conclusões que envolvem o tema relacionado à violência policial no Brasil. Para alguns setores da sociedade, trata-se de uma ferida aberta e seus novos sintomas. Mas, para o poder público, tem-se uma janela de oportunidade para a perspectiva de um novo olhar para os fenômenos que se multiplicam.
Faz-se necessário problematizar a diferença entre “política de segurança” e “estado de sensação de segurança”. Isso porque os inúmeros casos sugerem que o envolvimento das forças policiais não trouxe a pacificação como resultado. Tanto é verdade que, apesar da superlotação das unidades prisionais, os noticiários sugerem que a violência está longe de terminar.
Também, na semana passada, houve grande repercussão a respeito de um caso no município de Uberaba. Segundo a imprensa, uma mãe compareceu a uma unidade de saúde, em função do fato de que seu filho apresentou falta de ar. Já era a segunda vez na mesma semana. Já o hospital alega que a mãe “perdeu controle” e gerou uma forte tensão com os profissionais, resultando numa abordagem policial muito dura, o que sensibilizou grande parte da população mineira. Ora, é uma mãe buscando atendimento de saúde para o filho.
Criminalização da pobreza
Vale mencionar que alguns estudiosos defendem que as medidas repressivas fazem parte da história do Brasil. Tanto é verdade que a construção política antidrogas, por exemplo, criou instrumentos que deram autonomia às instituições do Estado para a prática de repressão. Há questionamentos sobre esse cenário, sempre em busca de uma explicação para o fato de que as forças repressoras do Estado estão mais presentes em públicos em situação de vulnerabilidade. Seria uma espécie de criminalização da pobreza?
É uma ótima oportunidade para analisar os dados relacionados ao sistema prisional. Nota-se uma população majoritariamente advinda de percursos históricos marcados por vulnerabilidades. A própria ONU, nessas considerações feitas pelo comitê sobre a tortura, chama a atenção ao fato de que 84,1% das vítimas de violência policial em 2021 eram afro-brasileiros.
A população brasileira assiste, diuturnamente, matérias jornalísticas envolvendo operações policiais como uma espécie de “revanche”. É de causar muita preocupação com os casos em que as pessoas se tornam “justiceiras”, como se pudessem ocupar livremente o lugar do Estado de fazer o uso da força. No fim, ficam todos contra todos e isso tem que mudar.
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Ninguém se pergunta quantas pessoas negras compõem os parlamentos. Quantas pessoas da periferia se tornaram vereadores ou deputados? Como é a rotina dessas pessoas, tentando evidenciar a própria história nas arenas democráticas de debates?
Ataque contra a deputada Andreia de Jesus
Recentemente, veio a público o pedido da Comissão de Segurança Pública, da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), para a retirada da escolta da deputada estadual Andréia de Jesus (PT) que preside a Comissão de Direitos Humanos. Ela, que tem um vasto histórico de ameaças contra a sua própria vida, tem sua proteção realizada por forças militares. O motivo de tanta ameaça? Ousou questionar fatos públicos relacionados a alguns excessos praticados por forças policiais brasileiras.
Infelizmente, a tarefa dessa mulher negra, vinda da periferia, não é fácil. Presidir uma Comissão de Direitos Humanos é ajoelhar-se perante a Constituição Federal e servi-la incansavelmente. Há tantos direitos, atacados diariamente, que alguém precisa lembrar da existência deles. Quando o Estado se ausenta na garantia de direitos básicos (alimento, moradia, saúde, liberdades, dignidade), outras violências são evidenciadas.
Ou seja, é uma tarefa árdua explicar para todos que lutar por uma política de segurança pública adequada é reconhecer todas as pessoas, tradições, culturas e saberes. É considerar o fato de que as pessoas que exercem a função de segurança pública, como policiais, merecem condições dignas de trabalho, mas que não podem apagar nenhuma vírgula dos direitos fundamentais.
Reconstrução da política de segurança
Desse modo, é importante considerar as recomendações recentes da ONU, quando sinalizam a necessidade de releitura urgente sobre práticas que demonstram a recorrência de técnicas de tortura ou de repressão. Há uma preocupação muito forte com armas letais, públicos vulneráveis e superlotação do sistema prisional. Faz-se necessária a reconstrução da política de segurança, com o esforço geral de todos os entes federados, sempre pautando a necessidade de investigação e apuração das denúncias relacionadas a qualquer violência praticada por qualquer órgão do poder público.
Por fim, vale mencionar que somente os caminhos democráticos são capazes de gerar pacificação. Simplesmente, pelo fato de que o Estado não tem opinião, tem dever. E cabe a ele decidir qual será a ponderação dos valores que se chocam, em busca de uma política de segurança pública que não machuque a Constituição deste país que nasceu para salvar a todos.
Matheus Resende é advogado, graduando em gestão pública pela UFMG, com especialização em administração pública, planejamento e gestão governamental pela Fundação João Pinheiro, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-MG e coordenador em Projeto Rondon MG.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa