Após 12 anos do reconhecimento da união homoafetiva, nossa lei segue baseada em conceitos machistas
A licença-maternidade é direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988. Contudo, há uma nota técnica, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, dizendo que a mãe não parturiente teria direito à licença-paternidade. Ainda que seja mãe, essa mulher não teve seu direito à licença-maternidade reconhecido. Mesmo após 12 anos de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter reconhecido a união homoafetiva como núcleo familiar, nossa legislação segue baseada em conceitos heteronormativos e machistas.
A referida nota se baseia numa perspectiva que não atende às configurações familiares atuais, pois entende que as licenças parentais se dividem, necessariamente, entre paternidade e maternidade, independentemente da composição familiar. Sabemos que o período da licença-paternidade é muito inferior ao da licença-maternidade, e isso reflete a ideia de que a função de cuidado com a criança pertence à mãe/mulher.
Precisamos avançar na reflexão acerca dos fundamentos da licença parental, que deveria estar fundamentada não somente na necessidade de afastamento da mãe parturiente do ambiente de trabalho para recuperação física pós-parto, mas, sobretudo, na necessidade da construção de vínculos e do cuidado com a criança.
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É evidente a contradição levantada com a questão, e nas contradições temos possibilidade de aprofundar nossas discussões para avançar. Ou nossa sociedade considera a concepção já consolidada pela Constituição, de que a proteção à maternidade é direito social, e garante esse direito a todas as mães e pais, ou altera sua compreensão de licença parental, contemplando assim todas as formas de ser família.
Portanto, não se trata da inclusão de pontos na nota técnica, a sua revogação é salutar para que a discussão possa se aprofundar da maneira necessária. Por isso, como deputada, solicitei ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos a imediata revogação dessa nota técnica.
Problema estrutural
Essa questão é mais ampla do que parece e tem sua raiz em um problema estrutural, que é o patriarcado. A forma como nossa licença parental foi concebida, que garante aos homens tempo radicalmente inferior para o cuidado nos meses iniciais da criança, evidencia a clara suposição de que cabe à mulher as funções de cuidados com o/a filho/a.
Além da evidente sobrecarga resultante disso, as consequências se estendem para outras esferas da vida das mulheres, como nos mostra uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, que indica que quase metade das entrevistadas estavam fora do mercado de trabalho 24 meses após o início da licença maternidade, sendo a demissão e falta de vagas em creches os motivos apontados com maior recorrência.
Quando falamos sobre cuidado, é necessário pensarmos em um conjunto de fatores que dê conta de abarcar toda sua complexidade. A Suécia, um dos países com maior avanço pela igualdade de gênero, nos traz um exemplo de licença parental que oferece 480 dias de licença remunerada, divididos igualmente entre os pais/mães da criança, sendo que apenas 150 desses 240 dias podem ser transferidos entre as duas pessoas.
Além disso, no país há uma política denominada "VAB" (Vård av Barn), que em tradução livre significa "cuidado com criança", que oferece aos pais o direito de tirar licenças remuneradas pelo Estado para cuidar dos seus filhos quando eles ficarem doentes. Isso tudo somado a uma política pública de assistência que facilita o acesso a creches por meio de subsídios.
É evidente que o assunto envolve impactos financeiro, social e jurídico na sociedade, tanto que, no Brasil, a questão já chegou ao STF e se tornou tema de repercussão geral. No processo em questão - de número 1072, o Supremo irá julgar se duas mães têm direito à concessão de licença maternidade dupla.
Fato é que o debate não subsiste e não pode prosseguir sem a imediata revogação dessa nota técnica, que reflete a postura do governo anterior incapaz de acessar as várias camadas que essa discussão traz. É fundamental que o direito à licença parental seja interpretado em consonância com os princípios da dignidade humana, da igualdade, da liberdade reprodutiva, do melhor interesse do menor e, no caso em questão, da proteção ao vínculo maternal da mãe não gestante.
Ana Pimentel é deputada federal pelo PT-MG. É médica defensora do SUS, docente no Departamento de Medicina da Universidade Federal de São João del Rei e pesquisadora da saúde coletiva.
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Leia outros artigos de Ana Pimentel em sua coluna no jornal Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião. A visão do/a autor/a não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Larissa Costa