No marco dos dez anos das manifestações que inundaram as ruas de todo o país, lideranças que participaram dos protestos em Belo Horizonte fazem o balanço de que as jornadas de junho de 2013 ajudaram a formar uma nova geração de lutadores, garantiram conquistas para a cidade e demonstraram a importância das mobilizações de rua.
Inicialmente convocados para denunciar os preços abusivos das tarifas de ônibus nas cidades brasileiras, os atos foram incorporando uma série de outras demandas das classes populares, como o acesso à moradia, educação, cultura, mobilidade e saúde de qualidade. Para se ter uma ideia, no dia 26 de junho daquele ano, mais de 100 mil pessoas saíram às ruas da capital mineira.
Conquistas
O advogado e urbanista, Joviano Maia Mayer, destaca que ainda temos muito o que extrair e aprender com a experiência de junho de 2013. Para ele, as manifestações foram parte de um processo complexo, cujos desdobramentos seguem vivos até os dias de hoje.
“As jornadas de junho tiveram uma continuidade, um efeito prolongado no tempo, de um evento social complexo, que abalou as estruturas políticas e culturais do nosso país em 2013 e que, de certo modo, continua em aberto. É impossível uma análise conclusiva de um fenômeno como esse, cujos efeitos, tanto positivos quanto negativos, continuam reverberando”, avalia.
Entre os efeitos positivos, ele acredita que o processo gerou a produção de uma nova estética política e de novas narrativas. Em Belo Horizonte, especificamente, Joviano ainda elenca uma série de conquistas com as mobilizações. Ele cita, por exemplo, a expressão que as ocupações da região da Izidora ganharam com os protestos.
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“Na época, as ocupações agrupavam aproximadamente 8 mil famílias. Elas ganharam uma força muito grande a partir das jornadas e se consolidaram. Hoje, estão em processo de regularização fundiária. É um exemplo de luta para o mundo”, relembra.
Incidir com pautas progressistas
Das quase 100 mil pessoas que foram aos protestos na capital mineira, boa parte eram jovens que, pela primeira vez, participavam de manifestações políticas. Dessa forma, outro aspecto positivo das manifestações foi justamente o encontro dessa nova geração com as lutas de rua.
A militante do Movimento Brasil Popular, Luciléia Miranda, que na época tinha apenas 21 anos e fazia parte do Levante Popular da Juventude, conta que, antes das jornadas, as maiores mobilizações das quais ela havia participado tinham sido as lutas no bojo da greve dos servidores da rede estadual da educação, em 2011, que durou 112 dias.
“Então, quando vimos aquela expressão, com aquela quantidade de gente nas ruas em 2013, foi de fato uma coisa inédita. Ficou o sentimento de ‘não podemos deixar de participar desse momento’. O sentimento geral era do ineditismo daquela massificação e da importância daquilo, mesmo que as pautas fossem dispersas”, relembra.
Muitas pessoas entraram nas organizações, que se renovaram
Para ela, o processo gerou uma renovação nos movimentos sociais e organizações de esquerda que, diante da amplitude dos sujeitos e demandas, buscaram incidir com as pautas progressistas e populares.
“Ficou muito famoso, na época, aquela ideia de ‘é tanta coisa errada que nem cabe num cartaz’. Nós entendíamos que a nossa tarefa ali não era necessariamente disputar todos os rumos daquele processo massivo, mas de colocar as pautas progressistas. Em partes, nós conseguimos. Foi um período em que uma parte das organizações de esquerda se renovou muito. Muitas pessoas entraram nas organizações, provando que existia ali uma juventude que queria discutir política”, conta.
O papel da mídia burguesa
Lucileia também relata que, assim como as organizações populares buscaram incidir nas manifestações, junho de 2013 também deixou nítida a capacidade dos meios de comunicação empresariais de tentar influenciar nos rumos do processo.
“Ficou clara a capacidade da mídia burguesa de direcionar os ânimos para pautas que não eram sociais e que não necessariamente estavam colocadas para os manifestantes. Ao mesmo tempo, tiveram capacidade de, a partir disso, questionar o governo Dilma”, explica.
Joviano Maia Mayer destaca que, em algumas capitais, a “captura” das pautas fez parte do processo que culminou no impeachment da primeira presidenta do Brasil, em 2016.
“Em determinadas capitais, também expressaram ‘proto-fascismos’ que, a partir de 2014 e 2015, culminaram com as manifestações dos verde-amarelos, que levou à derrubada de Dilma, legitimamente eleita pelo voto popular, vítima de um golpe jurídico e parlamentar. Fica essa sensação de que junho também inaugura esse período das trevas que vivemos a partir do golpe de 2016 e com a ascensão do fascismo no poder, com a eleição de Bolsonaro em 2018”, avalia o urbanista que, mesmo assim, enfatiza a importância dos atos em BH.
Bandeiras vermelhas e processo coletivo
Junto da tentativa de capitulação das pautas, em algumas cidades brasileiras, houve também o intento de criminalizar a participação de organizações populares nas manifestações. Em São Paulo, por exemplo, no protesto do dia 20 de junho, bandeiras vermelhas foram queimadas.
Porém, na capital mineira, lideranças de movimentos e pessoas voluntárias organizaram a Assembleia Popular Horizontal (APH) onde, coletivamente, eram debatidas as pautas e o caráter das manifestações.
Leonardo Péricles, presidente da Unidade Popular e militante do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) conta que, em um dos encontros da APH, com a participação de mais de mil pessoas, foi deliberado que, em Belo Horizonte, os protesto eram de esquerda e as bandeiras das organizações políticas eram permitidas.
“Foi um marco da unidade das lideranças espontâneas, que surgiram no processo da luta, e os movimentos sociais e populares que já existiam e entendiam que as jornadas eram um momento importantíssimo das lutas sociais no país. A primeira grande APH reuniu mais de mil pessoas debaixo do viaduto Santa Tereza”, relata.
Depois de horas de debates acalorados e profundos, foi colocada em votação e a proposta aprovada por imensa maioria foi de que as jornadas de junho em BH eram de esquerda e as bandeiras vermelhas iriam ser levantadas com toda a liberdade que elas deveriam ter”, complementa.
Surgimento do Tarifa Zero BH
Também foi a partir das manifestações que se consolidou um dos principais movimentos que lutam pelo direito à mobilidade e à cidade de Belo Horizonte, o Tarifa Zero BH. Uma das integrantes, a jornalista Juliana Afonso, conta que o movimento surgiu de um dos grupos de trabalho que ajudavam na organização da APH.
“Eu participei de uma assembleia, disse que era jornalista e que queria contribuir com a comunicação. Me explicaram que existiam alguns grupos de trabalho e um deles era o de mobilidade urbana. Era um grupo bastante amplo, com muitas pessoas. Eu comecei a participar e foi dali, que mais a frente, deu origem ao Tarifa Zero BH”, relembra.
“Hoje, somos um grupo com longa agenda de lutas pela cidade. Ao longo desses anos, fomos adquirindo um acúmulo de conhecimento técnico e de luta sobre como a mobilidade e a política urbana são estruturadas em Belo Horizonte”, complementa Juliana Afonso.
Outros junhos virão?
Para Leonardo Péricles, o processo de construção coletiva foi o que deu condições para que as manifestações ganhassem um caráter cada vez mais massivo e organizativo. Ele ainda argumenta que, como boa parte das pautas levantadas não foram solucionadas, outros processos como o de junho de 2013 ainda podem acontecer.
“Influenciamos e convencemos mais de 100 mil que ocuparam as ruas no grandioso protesto dias depois. Isso mostra, que as jornadas começaram espontâneas, mas foram ganhando caráter organizativo no seu desenvolvimento. A tendência é que aconteçam novamente levantes semelhantes. Estes, pelo aumento do nível de consciência do movimento social, tendem a ser ainda mais fortes, mais organizados e conscientes! Temos que trabalhar no sentido de prepará-los. Esse é o caminho para que a classe trabalhadora e os povos assumam o volante do Brasil”, avalia.
Edição: Elis Almeida