Minas Gerais

Coluna

Internet precária é um obstáculo na garantia de direitos de povos rurais e tradicionais

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O dossiê aponta para a dificuldade de acesso à internet como mais uma camada de exclusão em contextos de violações de direitos causadas pela presença de grandes empreendimentos nessas regiões. - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Pesquisa mostra exclusão digital em áreas de conflitos socioamientais

De que forma o acesso digno à internet está relacionado aos direitos econômicos, sociais e culturais de uma comunidade que enfrenta um conflito socioambiental? Para lançar sobre esse tema um olhar aprofundado, o Coletivo Margarida Alves elaborou o dossiê “Acesso à internet e o exercício de direitos”.

O documento detalha os impactos discriminatórios associados às novas tecnologias digitais, a partir de uma pesquisa feita em 30 comunidades tradicionais de Minas Gerais. Em comum, as áreas têm a convivência de seus povos com as ações de grandes empresas, como mineradoras, madeireiras e hidrelétricas, responsáveis por diversas violações de direitos humanos: os direitos à água, à saúde, à terra e à informação.

O dossiê aponta para a dificuldade de acesso à internet como mais uma camada de exclusão em contextos de violações de direitos causadas pela presença de grandes empreendimentos nessas regiões.

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O caso de realização de audiência pública virtual é bastante emblemático. Se uma pessoa não tem internet para participar de uma audiência pública virtual, que diz respeito, por exemplo, a um projeto prestes a ser instalado em sua vizinhança, que irá impactar diretamente sua vida, como ela vai participar? E como irá contar a sua versão dos fatos? O direito à internet é um direito humano e impacta uma série de outros direitos.

Onde ficam as comunidades

As comunidades estão localizadas em regiões do Jequitinhonha, Norte de Minas e região central do estado. São quilombos e comunidades rurais atingidos pela mineração em Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas e Serro. São comunidades tradicionais do Alto-Médio Rio São Francisco em Buritizeiro, Januária, Pedras de Maria Cruz e Várzea da Palma, todas ameaçadas pelo agronegócio.

São também comunidades geraizeiras do Vale das Cancelas em Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis, prejudicadas pelas atividades de monocultura de pinus, eucalipto, mineração, e também o Quilombo do Baú, em Araçuaí e Coronel Murta, onde conflitos fundiários se fazem presentes.

Elizete da Sena, estudante de licenciatura em educação, é moradora da comunidade de Passa Sete, em Conceição do Mato Dentro, um dos territórios abordados na pesquisa. A região, desde 2009, convive com as consequências das ações de grandes empresas.

“Em 2005 chegou a Borba Gato, uma madeireira querendo explorar eucalipto. Comprou um monte de fazendas, mas depois vendeu para a mineradora MMX. Em 2009, tudo foi comprado pela AngloAmerican e, desde então, começaram a se organizar para minerar a região. Agora já tem barragem e já conseguiram desapropriar a maioria das famílias daqui para expandir ainda mais”, conta.

Internet é ruim e cara

De acordo com a estudante, que também colaborou para a aplicação dos questionários do dossiê, a internet só chegou em Passa Sete durante a pandemia de covid-19.

“A gente instalou [a internet] para não se isolar ainda mais, mas a conexão é muito ruim. Antes disso, as notícias sobre os processos judiciais chegavam por meio dos movimentos sociais, principalmente o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), que vinha aqui para poder colaborar com a nossa mobilização. Até hoje, o acesso é precário e caro. Muita gente consegue só o básico. E para as empresas, quanto mais distantes das informações estivermos, melhor”, conta.

Elizete observa como a utilização da internet pelos moradores depende ou da internet via satélite, com abrangência limitada na região, ou do uso de dados móveis, o que também restringe a navegação a poucos aplicativos.

“Se alguma decisão tomada vai afetar diretamente nossas vidas, temos direito de participar e isso deve ser garantido pelo poder público, o que não acontece”. Nesse sentido, Elizete também chama a atenção para outro ponto abordado no dossiê: o direito à informação deve ser imediatamente associado ao direito à consulta livre, prévia e informada e de boa-fé prevista na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Direito à informação

A pesquisa colabora com o debate sobre direito à informação no Brasil em um momento importante, em que os processos de tomada de decisão estão acontecendo cada vez mais em âmbito privado.

Quando falamos de conflitos socioambientais, nos referimos a multinacionais, empresas que estão no mercado de capital, cujos processos internos são ignorados pelas pessoas que serão afetadas por eles. E isso não acontece porque as pessoas não estão interessadas, e sim porque são blindadas, impedidas de participar.

Alguns dados da pesquisa

Foram entrevistadas 424 pessoas para o levantamento de dados relativos à identidade tradicional, raça, meios de acesso à internet, qualidade e custos desse acesso. A grande maioria, ou seja, 95,99% se identifica como preta e parda (35,1% e 60,9%, respectivamente). A presença de uma maioria de pessoas racializadas reitera a evidência da associação entre desigualdade racial e o racismo ambiental presente no contexto das comunidades atingidas por grandes empreendimentos.

Tal evidência também aparece no estudo quando os dados apontam para o fato de que 66,03% das pessoas entrevistadas possuem renda mensal inferior a R$ 1.045. Ou seja, mais da metade dessas comunidades vivem com menos de um salário mínimo.

Entre o universo de entrevistados, 87,5% das pessoas acreditam que é importante o acesso à internet. Entretanto, apenas 27% conseguem se conectar e 60% dos entrevistados não acessam a internet por questões financeiras. Isso evidencia a importância de políticas capazes de buscar soluções para a exclusão digital no país.

O dossiê joga luz a uma importante questão: o acesso limitado e precário à internet simboliza sérios obstáculos para que povos rurais e tradicionais acessem seus direitos. Assim, é preciso garantir que toda e qualquer pessoa tenha a possibilidade de acessar a internet.

Confira o dossiê na íntegra aqui.

 

 

Carolina Spyer, Larissa Vieira, Layza Queiroz Santos e Lethicia Reis são advogadas populares do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular (CMA), uma organização antirracista, anticapitalista e feminista, que presta assessoria jurídica popular a diversos grupos no campo e na cidade. Laura de Las Casas é jornalista e colaborou com a divulgação do projeto.

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Leia outros artigos da Coluna do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular (CMA), Minas de Resistência, no Brasil de Fato MG!

 

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Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

 

Edição: Elis Almeida