Mercado de trabalho precarizado, dificulta combate a fome
O capitalismo brasileiro do século XXI impõe novos desafios para a garantia do direito à alimentação, assim como para garantia de outros direitos fundamentais.
Ao longo do século XX e do começo do século XXI, o principal mecanismo de garantia dos direitos fundamentais no Brasil e no mundo foi o acesso ao trabalho formal: ao participar da força de trabalho formal, trabalhadores e trabalhadoras garantiam sua representação política por meio dos sindicatos, que também lutavam pela valorização do salário. O trabalho formal também estava, de maneira geral, vinculado ao acesso a outros direitos como o direito à saúde, ao descanso remunerado e até mesmo à moradia.
Foi com os “frutos do trabalho” que a China tirou mais de 800 milhões de pessoas da pobreza. Da mesma forma, os governos do Partido dos Trabalhadores usaram uma combinação de programas de transferência de renda e valorização do salário para tirar milhões de brasileiros da pobreza.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
No caso brasileiro, programas como o Bolsa Família foram responsáveis por elevar brasileiros e brasileiros da extrema pobreza para a pobreza. A partir desse ponto, a formalização do trabalho e, especialmente, a valorização do salário-mínimo cuidavam de levar os trabalhadores da pobreza para um maior padrão de consumo e de acesso a direitos.
Direitos sem trabalho?
No entanto, a economia brasileira passou por um intenso processo de desindustrialização nos últimos quarenta anos. A desindustrialização acaba com empregos formais, sindicalizados, mais bem remunerados e com acesso a direitos. No lugar das indústrias, entram os serviços pouco produtivos e baseados em trabalho precário e informal. No Brasil, a desindustrialização teve seus impactos multiplicados pelo intenso processo de precarização do trabalho desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016.
Nesse contexto, a garantia de direitos fundamentais como o direito à alimentação saudável fica em risco. Torna-se cada vez mais difícil a simples tarefa de “encontrar” as pessoas em situação de vulnerabilidade, pois a “flexibilidade” do trabalho não mais a vincula a um único emprego.
Nesse contexto, cresce a importância dos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC): garante-se uma renda mínima sem vinculação com o trabalho formal e a contribuição para a Previdência. Por esse motivo, o CadÚnico é uma ferramenta imprescindível na nova realidade: permite manter o contato e o acompanhamento das famílias mais vulneráveis. O sistema também se tornou referência para as diversas políticas públicas, da concessão de financiamento estudantil ao Bolsa Família.
Combate à fome no mundo precarizado
Também é nesse contexto de desvinculação entre trabalho e emprego formal (ou mesmo informal, mas fixo) que deve ser repensada a política de combate à fome. Em um ambiente onde o trabalho é intermitente e precário, políticas de valorização da renda do trabalho tendem a ter menos efeitos na garantia da alimentação saudável. É claro que a reindustrialização e recuperação dos empregos de qualidade é essencial, mas temos que pensar em formas mais urgentes que complementem a abordagem pela via do trabalho.
Aqui entram as cozinhas solidárias, como as iniciativas tocadas pelo MST, MTST e Movimento Brasil Popular. As cozinhas solidárias são uma forma de atuação baseada no território e na moradia, não no trabalho. Garantem que, independentemente da situação laboral, todos e todas tenham acesso ao direito fundamental à alimentação saudável. As cozinhas solidárias devem ser institucionalizadas, integrando um sistema de garantia da alimentação saudável que inclui restaurantes populares e a alimentação escolar.
Assim como o SUS desvinculou o acesso à saúde do trabalho formal, devemos colocar no horizonte um “sistema único de alimentação saudável”.
A economia da comida no prato
Mais do que garantir o prato de comida, é necessário garantir a economia que leva a comida até o prato. Aqui entra todo o complexo produtivo da agricultura familiar, com as políticas públicas que a apoiam: o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), programas de crédito para a agricultura familiar como o Pronaf, a manutenção de estoques reguladores que estabilizem os preços de gêneros alimentícios e o avanço da reforma agrária.
Por sua vez, os programas do governo que garantem a economia da comida no prato precisam de orçamento. É por isso que o Movimento Brasil Popular apresentou a proposta “Orçamento popular é orçamento sem fome”: para garantir que o orçamento reflita a prioridade do programa popular eleito nas urnas, é urgente garantir o financiamento desse complexo de políticas públicas.
Politizar o combate à fome
Depois de garantir os programas de combate à fome, a economia da comida no prato e o orçamento para essas duas tarefas, há um último passo essencial: politizar o processo. A construção das cozinhas solidárias deve continuar politizada, envolvendo a auto-organização da população trabalhadora, como fazem MST e MTST. E, assim como no caso do SUS, a participação popular também entra na gestão. Nessa direção, o governo federal já reativou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
E é nesse contexto que o Movimento Brasil Popular está apresentando a proposta Brasil sem Fome para o Programa Brasil Participativo. O programa permite que todos os cidadãos e cidadãs escolham quais programas o governo federal deve priorizar no orçamento. Basta entrar no aplicativo gov.br e votar na proposta que vai priorizar o combate à fome no Brasil, mandando o recado para o governo Lula. A proposta será debatida na quinta (22), às 19 horas, nas redes do Movimento Brasil Popular.
Pedro Faria é economista e doutor em história. É pesquisador vinculado ao Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG, ao Instituto Economias e Planejamento e militante do Movimento Brasil Popular.
---
Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
---
Leia outros artigos de Pedro Faria na sua coluna no Brasil de Fato MG!
Edição: Elis Almeida