Oi, meu nome é Luana, tenho 31 anos, sou moradora de Brumadinho desde os 12 anos de idade. Eu frequento a cidade desde que nasci, minha família é de Brumadinho. Sou advogada e exerço a profissão desde 2018, quando formei.
Em decorrência do rompimento da barragem de rejeitos de minério na mina do Córrego do Feijão, ocorrido em 25 de janeiro de 2019, por volta 12h40, e amplamente divulgado na mídia na época, a Vale S.A. e a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais estabeleceram o Termo de Compromisso, que serviria de parâmetro para os acordos de indenização da população atingida.
Esses acordos preveem a possibilidade de o atingido ingressar com ações judiciais em decorrência dos danos que não estão inclusos no rol do documento. Mas esses acordos são de adesão, não havendo a possibilidade de livre negociação por parte dos atingidos. Ou eles assinam nos moldes como a Vale S.A. estipulou ou recusam em sua totalidade.
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No entanto, quando os atingidos entram na Justiça, pleiteando a indenização pelos danos não abrangidos nos acordos, a Vale S.A. usa o argumento de que o atingido reconheceu que os danos abrangidos pelo acordo são os únicos que ele teria sofrido. Esse argumento é possível a partir da interpretação de uma cláusula que não é explicada aos atingidos no momento da assinatura do acordo.
Então, esse acordo, ao mesmo tempo em que reconhece que o atingido pode buscar a indenização dos danos não abrangidos/descritos pelo acordo, faz com que o atingido, de modo que ludibria seu conhecimento, reconheça que só os danos elencados no acordo seriam o que efetivamente ele teria sofrido.
Esse argumento da Vale S.A. não pode ser usado como desculpa. Isso porque, ao se depararem com a possibilidade de receber alguma indenização, os atingidos preferem assinar o contrato, ao invés de arriscar e não receber nada.
Os danos que são listados no acordo são os que a Vale S.A. escolhe pagar. Esse reconhecimento é uma mutilação dos direitos dos atingidos. Isso é uma torpeza usada pela Vale S.A. para diminuir os valores com indenizações e não pagar tudo o que é devido aos atingidos. Um modo de ludibriar e forçar os atingidos a assumir uma situação que não é verdade.
A verdade é que a Vale S.A. paga o que quer. Em suma, fomos vítimas da Vale pela segunda vez.
Exemplos
Uma mãe que, quase perdeu sua filha. No dia 25 de janeiro de 2019, ela estava passando férias no sítio da família, no bairro Parque da Cachoeira. O sítio foi diretamente atingido pelos rejeitos de lama. Por ser uma sobrevivente, a criança foi indenizada, nos moldes desse acordo. Porém, como não poderia assinar, por ter apenas 6 anos de idade, a mãe assinou representando a filha.
Posteriormente, a mãe entrou com um pedido de indenização individual, pois perdeu parentes trabalhadores da Vale, e quase perdeu a própria filha. Tudo isso afetou sua saúde mental.
Resultado: a empresa Vale, além de não oferecer acordo a ela, alegou que, no momento em que ela representou sua filha, assinando um acordo de indenização de R$ 100 mil, valor totalmente irrisório, frente ao poder financeiro da empresa, estaria dando quitação de quaisquer danos sofridos em razão do rompimento.
Ou seja, essa mulher não pode mais reclamar, em lugar algum, os danos não indenizados.
Outro caso é de uma trabalhadora autônoma, moradora de Brumadinho, que vendia marmitas de almoço e vivia dessa renda. Quando ocorreu o crime da Vale, ela, assim como muitas pessoas da comunidade, totalmente imersas na situação, comovidas, em luto, se mobilizaram para ajudar uns aos outros.
A cidade recebeu inúmeros voluntários, sejam eles de resgate, de ajuda psicológica, da cruz vermelha, além de donativos de roupas, água, alimentos, entre outros. Essa senhora foi para a cozinha da igreja matriz de Brumadinho fazer comida para os voluntários.
Com isso, ela ficou pelo menos três meses com sua atividade econômica paralisada em virtude do luto, do desejo de ajudar os atingidos e do caos. Nesse período, ela teve dificuldades financeiras, já que não tinha mais sua fonte de renda.
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Mas, não pensem que foi irresponsabilidade dela. Todos estavam em extrema fragilidade e com desejo de ajudar. Ninguém pensava em comprar, vender, casar, comemorar aniversário. Nada! As vidas das pessoas foram suspensas.
Ocorreu que, a moradora, representada pela Defensoria Pública de Minas Gerais, assinou um acordo de indenização, apenas sobre os lucros cessantes, no valor de R$ 13.704, visto que era a necessidade mais imediata que ela tinha naquele momento.
De igual modo, ao primeiro exemplo, a Vale alegou judicialmente que ela não poderia pleitear outros danos, pois teria dado quitação de todos os danos que sofreu em razão do rompimento. Ressalto que, ela possuía registo de CNPJ, o que na teoria seriam pessoas diferentes, tendo em vista que agora ela estaria pleiteando indenização individual, de pessoa física.
Por fim, é preciso reiterar que se trata de um contrato de adesão: ou o atingido aceita a proposta de indenização parcial ou não recebe nada e luta por décadas na Justiça. Imagine você, uma pessoa da classe C, trabalhadora autônoma, em vulnerabilidade social, faz o que? Assina, pois precisa pagar as contas de água e luz, comprar comida para a casa.
Essa é a realidade dos atingidos que a Vale afirma, em seus comerciais, que já indenizou. A mineradora não indenizou, ela aplicou um segundo golpe.
Luana de Amorim e Silva Alves é advogada e moradora de Brumadinho.
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa