Ele era muito supersticioso e saiu de casa com o pé direito. Conferiu várias vezes a documentação
Naquele dia, ele levantou todo alegre. Tomou um banho demorado e fez a barba. Conversou sozinho olhando para o espelho. Ele estava desanimado da vida. Não estava muito preocupado com sua aparência. Também fazia tempo que estava desempregado. Ele vivia de bicos. Isso quando tinha algum. Aquela manhã se apresentava mais colorida, e o novo emprego estava chegando finalmente.
Era o dia de apresentar a documentação, e ele não queria atrasar um minuto. Ficou sabendo que a moça responsável pela sua contratação não era flor que se cheirasse. A mulher não tolerava atrasos e desculpas.
Ele era muito supersticioso e saiu de casa com o pé direito. Conferiu várias vezes toda a documentação. Não queria causar má impressão logo no primeiro dia. Chegou no ponto de ônibus na hora certa e chegaria com uns 20 minutos de antecedência ao horário marcado. Ele estava sossegado. Cantarolou até Tim Maia. Só que parou na hora. Ele achou que o velho Tim poderia trazer azar. As palavras têm poder. A música que cantarolava falava que queria sossego e não emprego. Ele começou uma do Paulinho da Viola.
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Ele reparou, chegando perto ao local do novo emprego, muitos carros de operadores de telefonia e internet. Avistou de longe vários fios jogados no passeio e trabalhadores no alto das escadas. Era uma escada atrás da outra.
Quando desceu do ônibus, por curiosidade, perguntou o que estava ocorrendo. Um trabalhador explicou que a operadora telefônica estava trocando toda a fiação do local.
Ele ficou meio ressabiado com aquele tanto de cabo, fios e escadas. Apertou o passo para não se atrasar. Queria logo entregar a documentação. Só pensava em como iria dar a boa notícia para a namorada, que pegava no seu pé direto.
O tempo passava muito rápido. Para sua surpresa, havia uma escada enorme na porta do prédio onde ele precisava entrar. Para entrar, ele precisaria passar por debaixo da escada. Ele começou a suar frio. Nunca passara por debaixo de uma escada a vida toda e não seria naquele dia que iria realizar tal façanha. Ele ficou paralisado e não sabia o que fazer, mas resolveu perguntar quanto tempo a escada ficaria aberta na porta do prédio. A resposta não foi a que queria ouvir. Ficou sabendo que ficaria até anoitecer.
O tempo dele estava passando, e o horário para entregar a documentação já estava quase em cima da hora. Ele convocou todos os santos para ajudá-lo. Ele até pensou em derrubar a escada e passar rápido, mas desistiu dessa ideia. Ficou com medo do tumulto que isso causaria. Ele mais uma vez espiou o relógio. Não tinha mais muito tempo. Pensou em ligar para voltar no outro dia. Perguntou se o prédio tinha outra portaria ou garagem. Não tinha.
O desespero batia em sua porta. Rezou um salmo. Jogou búzio virtual. Entrou numa página de um pastor da internet. Fez o que foi possível e o impossível. Nada adiantava. Na sua frente, a escada.
Os trabalhadores também não queriam tirar a escada. Ela era grande e pesada. Precisaria muita gente para afastá-la. Se ele passasse por baixo, seriam sete anos de azar. Se não passasse, ficaria sem o emprego. O que iria falar para a namorada? Olhou mais uma vez para o relógio. O relógio era implacável. O tempo não para.
De repente, chega a notícia de que a luz acabara nas redondezas. Seu telefone toca. Era o RH da empresa marcando para outro dia a entrega da documentação. Ele ficou aliviado. Parou no primeiro boteco e pediu uma coca-cola bem gelada. O alívio que sentia não tinha preço. No outro dia, chegou muito cedo, quase de madrugada. Não queria correr o risco de a escada estar na portaria do prédio. Para sua surpresa, na porta de entrega da documentação, tinha uma escada...
Rubinho Giaquinto é músico, escritor e militante do Coletivo Solidariedade Cidadã.
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Leia outras Crônicas de Rubinho Giaquinto em sua coluna no Brasil de Fato MG!
Edição: Larissa Costa