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América Latina: instabilidade política e econômica e o caso emblemático da Argentina

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O candidato de extrema-direita Javier Milei venceu as eleições primárias na Argentina - Foto: Mídia Ninja
É preciso conhecer as histórias para que se construam novas possibilidades no presente

A instabilidade econômica da América Latina, reflexo de sua estrutura pautada na extração e exportação de matérias-primas, é tema que não sai de voga na região. Mesmo o Chile, tido como modelo exemplar por economistas de vertentes mais ortodoxas, sofreu uma ruptura brutal com as políticas econômicas adotadas pelos governos desde Pinochet, em razão da alta desigualdade social no país, em 2019. A inflação também é ponto-chave para se entender as crises econômicas recorrentes na região, que recaem, sobretudo, aos mais desfavorecidos economicamente, ampliando o abismo social existente.

O caso mais emblemático, sem dúvidas, é o da Argentina, que atualmente acumula uma inflação de 115,6% nos últimos 12 meses, longe, no entanto, dos mais de 3.000% dos patamares da década de 1980. A questão da Argentina é relevante, pois nos auxilia na compreensão da realidade latino-americana: remete diretamente ao período da redemocratização, após anos de ditadura militar no país. Vamos aprofundar mais nela adiante.

Ditaduras militares do século 20

O território da América Latina foi palco de inúmeras ditaduras cívico-militares na segunda metade do século 20, em razão da Operação Pan-Americana, comandada pelos Estados Unidos, em uma tentativa de impedir a ascensão da esquerda e o comunismo na região, no cenário de disputa com a União Soviética durante a Guerra Fria.

Os regimes militares se tornaram muito dependentes do capital externo, que utilizavam para financiar seus programas desenvolvimentistas, além de dependerem também de importações de tecnologia e insumos para sustentarem seus processos de industrialização. Apesar do substantivo crescimento econômico obtido, a desigualdade social na região se acentuou ainda mais, devido à forte concentração de renda durante o período ditatorial, em função da lacuna de políticas públicas e sociais.

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Com os choques econômicos internacionais da década de 1970, como a crise do petróleo em 1973 e a crise financeira dos Estados Unidos, que resultaram na alta volatilidade do dólar e no aumento das taxas de juros mundiais, os países da América Latina adquiriram um expressivo endividamento externo. Isso desestruturou por completo a economia da região, minando inclusive o crescimento econômico que obtiveram em seu curto período de industrialização. Nos anos 1980, esses países passaram pela redemocratização, período que ficou conhecido como “Década perdida”, como mostram os dados da tabela abaixo.

Foi um momento caracterizado por estagnação econômica, instabilidade política e financeira que exerceram um impacto substancial sobre o crescimento econômico e o progresso social dos países.

Redemocratização e FMI

Buscando formas de se reestruturarem economicamente, adotaram um conjunto de medidas que visavam, de modo mais imediato, conter a hiperinflação e o aumento crescente de suas dívidas externas. Para servir de exemplo, México, Brasil e Argentina eram os principais devedores dos EUA na época.

Assim, recorreram ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) para obterem assistência financeira, medida condicionada à reformulação de suas políticas econômicas sob preceitos neoliberais defendidos pelas respectivas instituições.

Com isso, os países foram submetidos a uma série de normas e regras, calcadas em políticas de caráter recessivo: 1) políticas fiscais e monetárias contracionistas, para reduzir o crédito e conter o aumento dos preços; 2) austeridade fiscal, limitando gastos públicos e investimentos sociais; 3) desvalorização cambial, visando o equilíbrio da balança de pagamentos, ao incentivar as exportações; 4) reformas estruturais que se caracterizavam pela abertura econômica para o comércio internacional; privatização de estatais e redução do papel do Estado na economia; e 5) desregulamentação do mercado de trabalho de forma a atrair investidores. Foram essas políticas que nortearam os princípios do Consenso de Washington em 1989.

O resultado dessa adesão varia entre os países da América Latina ao longo do tempo, mas no geral, mesmo nos quais foi possível promover alguma estabilidade macroeconômica, como Chile, Peru e Uruguai, o processo se deu às custas de desigualdades sociais e econômicas significativas.

A redução dos gastos públicos impactou diretamente as políticas sociais voltadas à população de baixa renda gerando aumento da pobreza e de pessoas em situação de vulnerabilidade social; instabilidade política crescente devido à alta disparidade econômica; desemprego com a privatização de empresas públicas; e dependência das exportações de commodities, como minerais, petróleo, produtos agrícolas e minério, incentivada pelas políticas de abertura comercial.

Argentina: dolarização ou currency-board

O caso da Argentina, em particular, merece nossa atenção pelo fato de o país ter uma das economias mais instáveis da região e estar, atualmente, vivenciando uma profunda crise com taxas de inflação exorbitantes nos últimos meses, voltando à casa dos três dígitos, o que não ocorria desde a década de 1990. É a terceira crise econômica grave que o país enfrenta desde sua redemocratização.

A Argentina seguiu à risca as recomendações do FMI e implementou as políticas neoliberais defendidas pelo Consenso de Washington durante o governo de Carlos Menem, em 1991, por meio de seu ministro da fazenda Domingo Cavallo. Para conter a hiperinflação da época, que chegou a ultrapassar 3.000% no acumulado de 12 meses, foi criado o Plano da Conversibilidade.

Esse plano consistia na adoção de um sistema de câmbio fixo, por meio do qual estabeleciam a paridade da nova moeda local, o peso (que viria a substituir o austral) com o dólar, sendo 1 peso equivalente a 1 dólar. Os resultados imediatos, no curto prazo, foram promissores: a inflação foi contida, indo de 133% em 1991, a 12% no ano seguinte.

Efeitos colaterais

No entanto, apesar de ter sido bem-sucedido em seu objetivo de controlar a inflação no país, trouxe, na contramão, prejuízos econômicos, políticos e sociais inestimáveis à sociedade argentina.

A série de privatizações sem precedentes, inclusive de empresas nacionais estratégicas, e a flexibilização trabalhista, levaram a um aumento considerável do desemprego no país, além da falência de inúmeras pequenas e médias empresas que não conseguiam competir com os produtos importados, de fácil acesso em razão da abertura e liberalização econômica sem restrição, adotada pelo governo.

Outro fator crucial nesse contexto, foi a supervalorização da moeda que inverteu o superávit da balança comercial para um déficit de bilhões de dólares, além de triplicar o valor da dívida externa argentina. A privatização do sistema previdenciário argentino, também gerou um déficit alarmante nas contas públicas do país, ao entregar a arrecadação das aposentarias para o setor privado.

E ainda, a dolarização da economia deixou-a extremamente vulnerável a choques externos e dependente da entrada de capital para financiamento de seus gastos públicos, que o baixo volume de capital advindo de suas exportações que se tornaram sobrevalorizadas, não conseguia custear.

Economia em colapso

A fuga de capitais externos do país com a crise mexicana em 1994 e a subsequente crise asiática em 1997, contribuíram sobremaneira para o aumento do endividamento da Argentina. Além disso, a entrada desse capital no país vinha sob a forma de empréstimos, que deveriam ser pagos com juros, fazendo crescer a bolha da dívida.

A paridade cambial também obrigava o país a manter um volume alto de reservas em moeda estrangeira para sustentar o câmbio fixo. Para completar, o governo argentino investia um alto valor em bens e serviços públicos, por meio de endividamento externo.

O resultado desse conjunto de medidas foi o colapso da economia nacional, que se viu obrigada a adotar o congelamento das poupanças (Política do Corralito) e decretar moratória da dívida em 2001. O então presidente Fernando de la Rúa renunciou ao cargo, aumentando a crise política e institucional. O país perdeu credibilidade para investimentos estrangeiros e os próprios argentinos deixaram de considerar as instituições bancárias seguras para guardar seu dinheiro.

A crise política, institucional, social e econômica que assolou o país no início dos anos 2000 foi sem precedentes na história argentina, com mais da metade da população encontrando-se em situação de pobreza. A desigualdade social também atingiu níveis altos.

Foi preciso então transformações significativas no país para lidar com essa conjuntura: foi abandonado o Plano de Conversibilidade, acabando com o sistema de cambio fixo, o que desvalorizou consideravelmente a moeda argentina, gerando alta da inflação; houve implementação de programas sociais e maior distribuição de renda; foram realizadas reformas estruturais visando a inclusão social e a estabilização econômica, além de uma série de investimentos e intervenções na economia,

Fatores estruturais remanescentes

A recuperação da economia e da estabilidade do país após a adoção desse conjunto de medidas, foi um processo gradual e instável, mas beneficiada por um cenário internacional favorável, com a valorização do preço as commodities no mercado global, como a soja, um dos principais produtos da pauta de exportação do país.

Esse foi um dos principais fatores que contribuiu para alavancar a economia, além da desvalorização do peso, que possibilitou maior competitividade para suas exportações no mercado. A política de cambio flutuante, combinada com políticas fiscais controladas, e os programas de políticas públicas includentes, também foram essenciais nessa recuperação.

Ainda assim, a inflação sempre esteve presente na economia argentina e voltou a atingir os dois dígitos na década de 2010, tendo um crescimento substantivo com a crise cambial de 2018, que desvalorizou ainda mais a moeda nacional. Como consequência, houve aumento dos preços nas importações, diminuição do poder de compra da população, aumento do desemprego e da pobreza, gerando instabilidade política e institucional.

A taxa de juros da economia se tornou a mais alta do mundo, atingindo a casa dos 40%. Com a perda proeminente das reservas em dólares, houve um colapso no sistema financeiro do país com queda brusca nas ações e no valor dos títulos públicos, que acabaram perdendo credibilidade. A taxa de juros continuou subindo, atingindo patamares astronômicos e tornando a Argentina o país com o risco mais alto para investimentos.

As consequências foram a elevada a fuga de capitais e o aumento disparado da dívida pública, contraída em dólar. O desemprego e a pobreza cresceram de forma significativa, chegando a mais de 40% em 2020.

O fato de a Argentina ter atrelado sua moeda ao dólar explica parte importante da instabilidade que vivencia atualmente. Seus principais gargalos econômicos são a alta dívida externa, a baixa reserva de poupança externa (quantidade de dólares que detém) e falta de credibilidade do peso.

Além disso, a moeda argentina vem perdendo significativamente seu valor, em razão da política monetária expansionista do governo, que aumentou a quantidade de moeda em circulação no país para cobrir seus déficits fiscais (quando os gastos se sobrepõem às receitas), o que vem ocorrendo há mais de dez anos por lá. Para completar, a venda de títulos públicos que proporciona essa maior liquidez na economia, não foi suficiente, sendo necessária a impressão de moedas por parte do Banco Central Argentino, o que desvalorizou e descredibilizou ainda mais o peso.

Para segurar a taxa de câmbio, a compra de dólares pela população argentina, descrente de sua própria moeda, foi limitada pelo governo em 2019. Vale lembrar que reserva em dólares é fundamental para a estabilidade e garantia de credibilidade econômica do país, essencial para adquirir novos empréstimos e pagamento das dívidas.

Economia política e ideologia

A Argentina é um exemplo extremo de como as decisões políticas e econômicas não estão dissociadas. Ao se submeter a um modelo econômico estipulado pelos Estados Unidos e pelo FMI, calcado em políticas de cunho neoliberal, adquiriu uma dependência contínua do capital externo, vivendo em constante instabilidade.

De modo geral, a economia da América Latina aderiu a essas políticas como contrapartida para adquirir empréstimos após a “Década perdida”. São economias que flutuam, em maior ou menor grau.

O contraponto da estabilidade maior adquirida pela economia brasileira em relação à economia argentina, por exemplo, se dá justamente no fato de o Brasil ter desatrelado o real do dólar e ter buscado fortalecer a moeda nacional, o que lhe garantiu mais autonomia para suas políticas fiscais e monetárias.

É válido ressaltar como essa instabilidade econômica também se reproduz na política, e, portanto, nas instituições e na sociedade. As tentativas e os golpes de Estado que ocorrem na América Latina têm uma origem complexa, mas não são de difícil entendimento. É preciso conhecer as histórias para que se construam novas possibilidades no presente, com o entendimento que ele não está fadado ao fracasso. Para mudar a realidade, é necessário conhecê-la.

Trecho de As Veias Abertas da América Latina, livro de Eduardo Galeano:

“Para os que concebem a História como uma contenda, o atraso e a miséria da América Latina não são outra coisa senão o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas aqueles que ganharam só puderam ganhar porque perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já foi dito, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos. Na alquimia colonial e neocolonial o ouro se transfigura em sucata, os alimentos em veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta-cabeça da grimpa de esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos socavões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da floresta amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou certos povoados petrolíferos do lago de Maracaibo têm dolorosas razões para acreditar na mortalidade das fortunas que a natureza dá e o imperialismo toma. A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas de fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga”.

 

 

Maria Rita Oliveira é economista, analista de política internacional e mestre em filosofia contemporânea.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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Edição: Larissa Costa