Na última noite, nos sentamos ao redor de uma fogueira e compartilhamos histórias
A jornada começou logo de madrugada. Saímos de Lusaka de ônibus rumo à região baixa do Rio Zambezi. Éramos 12 mulheres indo para um workshop destinado a mulheres escritoras de viagens. Eu já saí de casa pensando em um texto que li sobre os povos indígenas na Amazônia brasileira que dizia que “a floresta não é uma coleção de árvores, mas um universo de povos vivos”.
Penso que essa ideia se aplica também para outros povos. A África não é um continente com uma coleção da vida selvagem ou de conflitos violentos, como narrativamente a mídia hegemônica apresenta, e sim um universo múltiplo em riquezas naturais e diversidade étnico-cultural, social e tecnológica.
Com essas e outras tantas coisas pairando em minha memória, percebi que chegamos na metade do caminho, onde paramos em um hotel à beira do Rio Kafue, e começamos outra parte da jornada de barco que duraria umas quatro horas. Cerca de meia hora depois, entramos nas águas opulentas, caudalosas e profundas do Rio Zambezi.
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Eu nunca havia passado tanto tempo nessas águas, mas, como sempre, me impressionei com a grandiosidade do Zambezi e com as tantas vidas que suas águas carregam, dentro e fora delas. Na medida em que o barco avançava, minha mente trabalhava loucamente em muitos pensamentos e conexões.
Em algum momento, o condutor falou sobre a mineração na região e preocupado enfatizou: “preciso do Zambezi e dos animais vivos, não de mineração. O povo vive daqui”. Infelizmente, a mineração de cobre chegou ao local e tem causado danos a essas populações.
Durante todo o trajeto pelas águas, passamos por pequenas comunidades ribeirinhas ao longo de suas margens, as pessoas nos cumprimentavam como quem acena ao viajante lhe desejando boa sorte em seu curso. É aqui que podemos ver, em um continente que outrora foi repartido à revelia de nações já existentes, que as águas do Zambezi são um também divisor de fronteiras. Estávamos na borda do Zimbabwe.
A primeira noite foi de lua cheia, avermelhada e brilhante, que surgiu das águas do Zambezi e se fez imponente. Chegou como quem sabe o seu lugar. Já o segundo dia foi marcado por um safari no Lower Zambezi National Park. A proposta era nos inspirarmos para elaborar nossas escritas da forma mais criativa possível.
Eu só pensei no quanto queria partilhar a existência dessas mulheres negras zambianas com vocês que estão do outro lado do Atlântico.
Pessoas incríveis, que me fizeram pensar o quanto é importante estar com quem nos fortalece e nos encoraja a seguir e concretizar nossos objetivos. Aprendi bastante com todas essas mulheres, que me apresentaram outras dimensões da Zâmbia, e isso me fez querer aprofundar minha compreensão sobre as diversas camadas sociais que compõem esse povo.
Na última noite, nos sentamos ao redor de uma fogueira e compartilhamos histórias, como fazia na roça quando era criança. Ao fundo era possível ouvir as águas do Rio Zambezi seguindo seu curso, acompanhando atentas o tecer de uma página entre tantas outras em nossas vidas.
Voltamos para Lusaka por terra e minha mente continuou muito movimentada. O Rio Zambezi é a “avenida” principal da Zâmbia, desde o Noroeste do país, onde nasce, até o Sudeste, onde estabelece a fronteira com o Zimbabwe, e atravessa Moçambique de Oeste para Leste, se desaguando no Oceano Índico em enorme delta.
Em vários pontos se observa diversas atividades em torno da pesca, da agricultura, do transporte, do comércio… Olhei para o horizonte e o sol avermelhado já ia se pondo. São muitas questões para se viver e compreender aqui nesta terra.
A tarde passou rápido no sacolejo do ônibus pela estrada, que deslizava tranquilo, porém veloz, como as águas do próprio Zambezi, que embora sejam contidas em diversos pontos, em outros, seguem seu curso veloz, sabendo onde devem chegar.
Iris Pacheco é jornalista, especialista em Teologia das Religiões Afro-Brasileiras e especialista em Estudos Latino-Americanos. É comunicadora popular e internacionalista na Zâmbia.
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Larissa Costa