Mídia empresarial promove interesse privatistas na saúde
Está na sabedoria do povo brasileiro que o direito à saúde pública, à educação pública, à aposentadoria pública sempre foi ameaçado por interesses empresariais. Ao longo dos anos, diversas pesquisas de opinião atestam que a maioria dos brasileiros sempre rejeitou a privatização desses mesmos direitos.
Em maio de 2018, auge da campanha conservadora contra as políticas de bem-estar social brasileiras, o Datafolha apurou que 88% dos entrevistados concordavam que o SUS deve se manter como um modelo de acesso universal, integral e gratuito para todos os brasileiros.
Em 2022, outra pesquisa Datafolha apontou que 94% dos brasileiros apoiavam o aumento de impostos sobre empresas responsáveis por produtos nocivos à saúde, devendo o valor ser repassado para o SUS. São os vestígios de uma soberania popular que não se corrompeu. Indícios de que há uma solidariedade na cultura popular que não vê nos interesses mercantis a realização da sua cidadania.
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Em que pese essa condição, os ataques à proteção estatal dos direitos a qual os brasileiros tanto prezam é incessante. E, o mais preocupante, é que essa agenda tem avançado à revelia da rejeição popular, sinalizando para o déficit de representação democrática do Congresso Nacional, que, não raro, processa uma agenda de costas para o que deseja a maioria da população.
Esse descolamento político entre a agenda de privatizações e o desejo dominante entre os brasileiros por proteção estatal dos serviços teve essa semana mais um capítulo.
Transforma sangue em mercadoria
Por 15 votos a 11 foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal a chamada PEC do Plasma. Entre seus detalhes, trata-se, literalmente, de comercializar sangue brasileiro ao autorizar a coleta e processamento de plasma pela iniciativa privada, podendo, inclusive, ser exportado para o exterior. Agora a PEC do Plasma segue para ser votada no plenário do Senado.
A grande organização lobista que patrocinou a campanha que retira do estado o controle sobre o processamento de sangue é a Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), que abriga mais de duas dezenas de empresas que exploram a doação de sangue como negócio de mercado.
Ao seu lado, o Instituto Coalizão Saúde (ICOS), outro grupo empresarial que reúne expressivas corporações do setor, rodou os grandes meios de comunicação endossando a tal PEC.
Por outro lado, entre diversos analistas que defendem o SUS, é unanime o entendimento de que a aprovação da PEC significa um sério risco ao equilíbrio e à segurança do Sistema Nacional de Sangue e Hemoderivados.
Demonizar o Estado, para ampliar lucros
Longe de representar um movimento isolado, essa iniciativa que busca alterar a Constituição para permitir a comercialização de sangue humano se vincula a um movimento político mais amplo, que tem em seu núcleo uma intensa disputa para transformar a percepção pública sobre o Estado.
Enquanto este se torna sinônimo de ineficiência e imoralidades, o cobiçado mundo novo da modernidade caberia à iniciativa privada, única alternativa para a oferta de serviços sofisticados e confiáveis.
Compreender esse cerco ideológico é fundamental para situar os grandes riscos do SUS. E nesse processo de legitimação das coisas privadas, é importante ter em conta a atuação política de outro poderoso grupo empresarial brasileiro: a mídia empresarial e liberal.
A Folha de São Paulo, por exemplo, talvez possa ser considerado hoje o maior think tank (comitê de ideias) da privatização radical de serviços e empresas estatais no país. Abandonando o jornalismo, esses empresários, que têm um desproporcional poder de fala e audiência, fazem propaganda sistemática em torno de interesses corporativistas. É o patrimonialismo depredando o interesse público.
No caso da saúde, esta empresa de comunicação mantém vínculos estreitos com o setor mercantil da saúde, que vai desde a oferta de planos de saúde privados a seus assinantes à realização de eventos patrocinados pela indústria farmacêutica.
Eventos como os “Seminários Folha”, são espaços privilegiados para que empresários de grande porte como o grupo farmacêutico suíço, Novartis, e a ABIMED (Associação Brasileira da Industria de Tecnologia para a Saúde) possam articular suas agendas sob o verniz de que estão fazendo jornalismo informativo.
É preciso compreender esse circuito fechado de interesses mercantis para identificar como o setor empresarial formula a sua agenda e ganham relevância pública. Trata-se de um clube empresarial, que define e divulga o que é bom ou não para o SUS, como ele deve se organizar, quais são suas falhas e o caminho para a solução de seus problemas.
Nesse processo, matérias jornalísticas, com alguma isenção, ganham espaço francamente desproporcionais.
Como nos ensina os professores Juarez Guimarães, Ana Paola Amorim e Venício Lima, o nome é disso é corrupção da formação democrática da opinião pública.
Está no republicanismo de Maquiavel que as sociedades se dividem entre aqueles que querem dominar (governo stretto) e aqueles que não querem ser dominados (populo minuto). A atualização histórica de seu realismo político nos informa que a mercantilização radical dos nossos direitos é a forma atual de um antigo desejo de dominação. A nossa época ecoa e resume os argumentos teóricos e políticos de Maquiavel, escritos para os séculos XV e XVI.
Nas próximas semanas, o orgulho brasileiro de um SUS soberano, universal, público e gratuito será mais uma vez colocado a prova contra a sede de sangue dos mercadores da saúde.
Ronaldo Teodoro é cientista político e professor do Instituto de Medicina Social (IMS – UERJ)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Elis Almeida