Minas Gerais

Coluna

Artigo | Profissão docente: o mito da formação

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Trabalhadoras da educação são pobres e cada vez mais negras" - Foto: Agência Brasil
É falso que má formação docente é a causa dos males da escola pública

O leitor já deve ter notado que, de um modo geral, quando se fala dos problemas da saúde no Brasil e da precariedade do transporte público nas grandes cidades, raramente ou nunca se imputa o problema à insuficiente formação da classe médica ou das pessoas que trabalham na organização do trânsito.

O mesmo não ocorre, no entanto, em relação à educação escolar. Nesta, quase sempre quando se fala da suposta falta de qualidade da escola, imediatamente se argumenta que o principal problema é a falta de formação docente.

Nesta semana em que se comemora o Dia da Professora, é preciso combater o mito de que o principal problema da escola pública brasileira decorre da precária formação de seus profissionais. Essa é uma condição fundamental para que possamos, de fato, atacar os problemas estruturais para que a escola pública básica brasileira possa ter a qualidade socialmente referenciada que todas as nossas crianças, adolescentes e jovens têm direito e merecem.

Este verdadeiro mito sobre a “má formação docente como sendo a causa de todos os males da escola pública” vem de longe e é reiteradamente atualizado nos mais diversos discursos, inclusive daquelas pessoas que, bem-intencionadas, acabam por repeti-lo sem notar o desserviço que prestam à causa.

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

Há, inclusive, muitos programas atuais de melhoria da qualidade da escola pública que se baseiam, fundamentalmente, nessa premissa.

Problema não está na formação

A primeira razão da força do mito é sua fundação e sua reiteração. Ele vem de longe. Surge no século XIX, momento em que se percebia o “atraso” brasileiro no concerto das nações e buscava-se expandir a escola; porém, não havia dinheiro suficiente. Há quase 150 anos, Rui Barbosa, uma grande referência para políticos, juristas e educadores afirmava a necessidade de duas reformas: “a reforma dos métodos e a reforma do mestre: eis, numa expressão completa, a reforma escolar inteira”.

A segunda razão, possível de vislumbrar já no texto de Rui Barbosa, é que sistematicamente, se escolhe, em política pública para a educação no Brasil, o que é mais barato em detrimento ao que é mais fundamental ou estruturante. Reformar métodos e o mestre é a coisa mais barata em educação. O difícil mesmo é criar condições de salário, carreira e trabalho que garantam as boas condições do exercício da profissão.

Não por acaso, dizia o Secretário do Interior de Minas Gerais, pasta responsável pela instrução pública, em 1906: “O regulamento estabelece a preferência da professora para o ensino primário [por] que a professora com mais facilidade sujeita-se aos reduzidos vencimentos com que o Estado pode remunerar o seu professorado”.

Em terceiro lugar, a reiteração do mito é generificada, ou seja, a centralidade da formação advém do fato de que os discursos e as representações sobre a docência, como se pode ver acima, não representam vozes das mulheres que passaram a ocupar, a partir do final do século XIX, a sala de aula. Ele é sistematicamente atualizado na voz cada vez mais potente dos homens que, não estando na escola, dirigem os “negócios da educação”.

Não por acaso, como lembravam Zeila Demartine e Fátima Antunes em um estudo clássico sobre o tema:   o magistério é uma profissão feminina, mas uma carreira masculina. Talvez, neste sentido, não seja por acaso que a gente não tenha tido, até hoje, nenhuma Ministra da Educação durante o regime democrático.

Ainda relacionado à generificação das análises e das políticas defendidas para o magistério, em que se sobrelevam as vozes em defesa de uma maior e melhor formação das mestras, está o fato de que, até hoje, perdure a errônea representação de que o salário das mulheres professoras é para complementar o salário dos maridos.

Ainda que o movimento sindical das professoras tenha buscado desmascarar este mito, ele persiste na cabeça de boa parte do parlamento brasileiro – majoritariamente masculino – que legisla sobre as carreiras e salários docentes.

Uma quinta razão para a permanência no mito é que ele é realimentado, continuamente, pelas próprias instituições de formação de professores, as quais, como forma de justificar e sua permanência e centralidade, não poupam esforços para oferecer razões para que o mito permaneça.

Hoje, boa parte das pessoas “qualificadas” para participar do debate sobre o tema se encontrem nas universidades e não se sentem cúmplices fundamentais de suas colegas que atuam na educação básica. Um sintoma disso é que, por exemplo, são raras as instituições de formação que celebram a Semana da Professora ou que têm o dia 15 de outubro como feriado.

Sendo claramente um mito, este da falta de formação docente como o aspecto central da educação brasileira, por que ele permanece e é reiteradamente atualizado nas políticas públicas, inclusive de governos ditos de “esquerda”?

Formação x salário e condições de trabalho

E por que ganha tamanha centralidade no debate educacional, ocupando, por exemplo, o lugar que deveria ser do debate sobre salário, carreira e condições de trabalho?

Em um texto de 1985, o professor Miguel Arroyo perguntava: “Quem de-forma o profissional do ensino?”. Em resposta à sua própria pergunta Arroyo respondia: as próprias condições de trabalho em que estes profissionais atuam. E esta tem sido a resposta também do movimento sindical das docentes da educação básica, que, felizmente, teimam em não cair no conto do vigário.

Mas, continuo perguntando, por que os políticos, jornalistas, profissionais das fundações privadas e até mesmo pesquisadores continuam repetindo o mantra da falta de formação? Por que não ouvem as professoras dizendo que o problema da educação brasileira não é a falta de formação do seu professorado e sim a precariedade de suas condições reais de existência?

Talvez possam ser trazidos aqui mais dois elementos importante para entendermos a questão: a primeira, o esquecimento; a segunda, a falta de cumplicidade com a luta das mulheres trabalhadoras da educação.

O esquecimento: quem conhece a história da universidade pública no Brasil sabe que, até final dos anos de 1960, elas eram quase exclusivamente instituições de ensino. O que as tornou uma potência na produção científica nas décadas seguintes, não foi o apelo à formação de seus quadros: foi a instituição de salários, carreiras, dedicação exclusiva... ou seja, a profissionalização.

A busca por uma maior formação foi uma consequência das exigências e dos benefícios da carreira, e não o contrário. Quem defende que a (boa) formação vem antes de salários e carreiras querem, na verdade, colocar o carro à frente dos bois (ou enganar a patuleia).

Falta de cumplicidade

Não é de hoje que se sabe que a profissão docente na escola básica brasileira vem sendo exercida nas últimas décadas por trabalhadoras pobres e, cada vez mais negras. Em contraste, as pessoas que dizem publicamente da profissão e legislam sobre a mesma são, majoritariamente, masculinas e brancas.

Então, este dia 15 de outubro – Dia da Professora - é ocasião, mais uma vez, de nos perguntarmos: com quais discursos e razões nos identificamos? Por que nos toca mais saber que as professoras brasileiras são mal formadas do que saber que recebem o pior salário do mundo? Quais os mitos abraçamos?

A quem prestamos nossa solidariedade e emprestamos a nossa cumplicidade?

 

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo e doutor em Educação e Professor Titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

---

Leia outros artigos de Luciano Mendes de Faria Filho na coluna Cidades das letras no Brasil de Fato MG

---

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida