Os estilhaços ideológicos do mais recente confronto entre o Hamas e Israel chegaram à política brasileira. Caindo em um campo minado pela polarização que a extrema direita introduziu no país sob o comando de Bolsonaro, eles têm produzido no debate público uma fumaça de desinformação que pode levar progressistas desavisados a uma confusão quanto ao que está efetivamente em disputa.
Na Câmara dos Deputados, Rogério Correia (PT), Guilherme Boulos (PSOL) e Lindbergh Farias (PT) estão entre as lideranças injustamente atacadas pelos provocadores extremistas que procuram encontrar meios para associar a esquerda brasileira, em especial parlamentares do PT e membros progressistas do Governo Lula, ao Hamas, responsável por atos de violência desferidos contra israelenses a partir da Faixa de Gaza.
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Sobre povos e governos
A estratégia dos provocadores tem o mesmo modus operandi nesses e em outros casos: condenar de modo claro os ataques feitos contra Israel pelo Hamas, associar parte da esquerda brasileira aos ataques em razão de sua notória simpatia pela causa dos palestinos e apostar que os progressistas não responderão à altura da indignação social por identificarem na violência atual desse grupo a incontornável resposta à violência que o governo israelense vem praticando na Palestina, em especial na Faixa de Gaza.
Assim, segundo essa estratégia, os progressistas brasileiros deveriam ser levados pelos provocadores a pisar constrangidamente em ovos ao condenar os ataques feitos pelos palestinos, desgastando-se perante a sociedade em momento de comoção pró-Israel.
A base dessa estratégia está no esforço que a extrema direita faz para produzir uma dupla confusão no debate brasileiro sobre o conflito entre Israel e o Hamas.
De um lado, os extremistas querem fundir de modo grosseiro os conceitos de povo e governo, ignorando as mais elementares lições de história da educação básica. De outro, pretendem colocar a questão ideológica onde ela não cabe e deixar de observá-la onde ela obviamente deve ser notada.
Fundindo os conceitos de povo e governo, a extrema direita tenta levar os observadores menos avisados do debate público a pensar que a esquerda brasileira, por apoiar a causa do povo palestino, incluindo a proposta de efetivação plena dos dois estados soberanos, apoia também todas as escolhas de ação do governo do Hamas, cujos métodos e estratégias, como se sabe, estão longe de representar unanimidade entre os habitantes da Faixa de Gaza.
Contra o senso humanitário seletivo
Estabelecer a distinção entre o povo palestino e grupos como o Hamas, por mais óbvio que isso possa parecer a alguns, é o marco zero de qualquer narrativa progressista e precisa ser feito com clareza para que a extrema direita não tente extrair benefícios da confusão.
É esse marco que permite condenar tanto morte de mais de mil civis israelenses, quanto a desumanidade que o governo de Israel patrocina contra os 2,2 milhões de palestinos que habitam a Faixa de Gaza, há anos cercada e impedida de receber alimentos, remédios, combustíveis e insumos em quantidade suficiente para atender às necessidades básicas da população.
Separar o apoio ao povo palestino do apoio aos métodos do Hamas torna coerente condenar também Israel, que em sua geopolítica para a Palestina vem matando milhares de inocentes, entre eles crianças e mulheres, vítimas de tiros e bombardeios ou da falta de condições mínimas para sobreviver a sucessivos ataques e cercos.
Ocupações ilegítimas
Entretanto, a necessidade de coerência na demonstração de preocupações humanitárias implica que a narrativa progressista brasileira sobre o conflito entre Israel e os palestinos não se renda a soluções fáceis. Tem havido na Palestina ocupações ilegítimas de território por parte do governo de Israel. Mas o povo israelense, como qualquer outro, não pode ser tachado de ilegítimo apenas por existir.
Esse povo ocupa há sete décadas um território em que a ONU reconheceu a existência de uma nação e estabeleceu um Estado soberano onde habitam pessoas que não podem responder, na condição de civis, pelas escolhas de seus governantes, assim como os civis palestinos da Faixa de Gaza não podem responder pelos métodos de enfrentamento do governo do Hamas.
É certo que Israel tem se revelado nessas sete décadas um contumaz descumpridor de acordos internacionais e que estabeleceu, sob o silêncio conivente e a inércia da comunidade ocidental, um colonialismo militarista que é injusto, opressivo e odioso para os palestinos, como se vê nas colônias da Cisjordânia.
Novamente, porém, culpar o povo pelos pecados de seu governo não é o caminho que conduz ao equilíbrio pacificador.
Extrema direita se aproveita em Israel e no Brasil
Por fim, além de resistir ao senso humanitário seletivo e à rudimentar confusão entre povo e governo, uma narrativa equilibrada para a esquerda brasileira a respeito do conflito entre Israel e o Hamas precisará colocar a análise ideológica em seu devido lugar.
Sem um discurso articulado desde o fim do Governo Bolsonaro, já que a “revolução comunista” que fecharia igrejas e outros espantalhos não se efetivaram com o início do novo Governo Lula, a extrema direita tem se agarrado a factoides como a afirmação de que os progressistas brasileiros, que se dizem defensores da democracia, apoiam os “terroristas de esquerda” da Palestina e deixam de apoiar a direita democrática israelense que, por intermédio do primeiro-ministro Benjamim Netanyahu, “estreitou laços com o Brasil” (leia-se “laços com o bolsolnarismo”) durante o Governo Bolsonaro.
Essa leitura distorcida dos fatos pelo prisma ideológico, cuja distorção pode parecer evidente a alguns, não é vista assim por todos. Assim, se quiser falar à massa e ser compreendida, a narrativa da esquerda brasileira sobre o estágio atual do conflito na Palestina precisa dizer o óbvio e sustentar que, se Netanyahu não inventou o massacre de palestinos, que o antecede em décadas, ele o ampliou significativamente em seus sucessivos mandatos.
À frente de um governo cada vez menos afeito a instituições democráticas como a rotatividade de ocupantes dos espaços de poder e o respeito à autonomia do Judiciário, e cada vez mais imerso em escândalos de corrupção, o primeiro-ministro israelense lidera uma equipe de radicais que passou a esmagar de modo crescente os palestinos da Faixa de Gaza e assim aumentou a fervura do já muito quente clima geopolítico da região.
Essa mesma equipe, ao que parece, conseguiu piorar a qualidade da até então elogiada inteligência militar israelense, que não foi capaz de detectar os movimentos que levaram à recente invasão de Israel pelos membros do Hamas.
E agora anuncia ela própria seus crimes de guerra e faz retaliações desumanas na tentativa de conseguir — pela força do ódio estimulado contra o inimigo externo — o apoio interno que vinha perdendo rapidamente em razão de sua ineficiência governamental, de seu radicalismo e dos escândalos de corrupção em que se envolveu.
O mal que a extrema direita faz
É esse, naturalmente, o ponto nevrálgico de qualquer análise ideológica do conflito na Palestina que venha a ser feita pelos progressistas brasileiros no debate público baseado em evidências: a extrema direita não piorou apenas a vida dos palestinos da Faixa de Gaza. Piorou também a vida da população israelense.
Investindo contra a democracia, atacando a autonomia do Judiciário, afundando em denúncias de corrupção, ampliando a hostilidade contra povos vizinhos, a partir da lógica radical do “nós contra eles”, e ainda piorando a qualidade do serviço público entregue ao contribuinte, como ficou claro no apagão da inteligência militar perante o Hamas, essa extrema direita é uma aposta no caos.
Qualquer semelhança eventualmente notada pelo leitor e pela leitora com o contexto brasileiro não será mera coincidência.
Márcio Almeida, 50, é professor, jornalista e analista político há três décadas. Atua no setor de inteligência e estratégia política no gabinete da deputada estadual Lohanna (PV) na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Elis Almeida