Brasil possui 11.255 médicos de família e comunidade, 2,3% do total
Implementada inicialmente como Programa de Saúde da Família em 1994, passadas quase três décadas, a Estratégia Saúde da Família (ESF) se consolidou como a principal porta de entrada da população no Sistema Único de Saúde (SUS). Considerando que a maior parte de nossa população depende exclusivamente do SUS para acessar serviços de assistência à saúde, o bom funcionamento da principal porta de entrada ao sistema tem vital importância para o seu bem-estar.
Uma dificuldade cronicamente enfrentada no SUS para a organização da ESF é o provimento e a fixação de médicas e médicos para as equipes de saúde da família.
Como parte da equipe, espera-se que o médico tenha capacidade clínica para resolução da maior parte das condições de saúde da população, principalmente aquelas mais comuns, sem a necessidade de encaminhamentos para outros especialistas. Deve também ser capaz de reconhecer situações urgentes, que necessitem de remoção imediata para ambiente hospitalar, além de coordenar o cuidado das pessoas que transitam por outros especialistas e serviços de saúde, já que essas pessoas se mantêm vinculadas à ESF, que deve ser o centro coordenador do cuidado.
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Tudo isso incluindo o atendimento a todo o espectro de gênero, idade e condições de saúde, enquanto considera as relações sociais e familiares das pessoas no contexto de seu cuidado e constrói redes na comunidade em que está inserido para melhor compreendê-la e nela atuar.
Exercer a medicina na ESF configura-se assim como um desafio com múltiplas camadas de complexidade. A especialidade que se propõe a formar profissionais preparados para essa atuação é a Medicina de Família e Comunidade (MFC). Apesar de existirem programas de residência da especialidade reconhecidos desde o início da década de 1980, especialistas em MFC começaram a ser formados em números mais expressivos no Brasil apenas há pouco mais de dez anos.
Dados da demografia médica mais recente mostram que em 2022 havia 11.255 médicos de família e comunidade no Brasil (2,3% do total de médicos). Esse número representa um aumento expressivo se o comparamos com os dados de 2012, quando havia apenas 3.353 desses especialistas no país (1,2% dos médicos daquele ano), mas está ainda muito aquém do necessário.
De acordo com o Ministério da Saúde, existem atualmente mais de 43 mil equipes de saúde da família no país. Apenas para suprir a necessidade de um especialista em MFC para cada equipe, precisaríamos de ao menos quatro vezes os pouco mais de 11 mil profissionais existentes atualmente. Considerando que parte desses especialistas atua em posições de gestão do SUS, em outros campos da assistência que não a ESF, e na saúde privada, temos na verdade um cenário de escassez ainda maior desses profissionais.
Outra forma de pensar esses números é comparando-os com outros países que possuem Sistemas Nacionais de Saúde públicos. Alguns exemplos de porcentagem de especialistas em MFC em relação ao total de médicos no país, de acordo com dados da OCDE: Austrália, 31%; Canadá, 47%; Espanha, 21%; França, 30%; e Reino Unido, 25%. Por mais que esses países tenham sistemas de saúde com características muito distintas entre si, todos tem em comum um percentual muito maior de MFC, entre seus médicos, quando comparado aos atuais 2,3% da força de trabalho médica brasileira formada nessa especialidade.
Se faltam médico, como formá-los?
Mas se faltam médicos de família e comunidade no país, como formá-los? A estratégia considerada ideal, por meio dos programas de residência médica, tem se mostrado insuficiente. Pouco mais de mil médicos ingressam na residência de MFC no Brasil por ano. Nesse ritmo de formação demoraríamos por volta de trinta anos para formar especialistas em número necessário para ocupar todas as equipes da ESF existentes, fora os outros postos de trabalho ocupados também por esses profissionais.
Para além da residência médica, o Ministério da Saúde tem apostado no Programa Mais Médicos, em sua versão mais recente, como estratégia complementar para a formação para a MFC no Brasil. Na sua proposta original em 2013, o programa, em conjunto com outras políticas previamente existentes como o Pró-residência, conseguiu induzir o aumento do número de vagas de residência médica em geral e proporcionalmente de áreas estratégicas, incluindo a MFC. Na proposta de 2023, por outro lado, o Mais Médicos pretende usar o próprio provimento como estratégia de formação de especialistas.
Nesse cenário, os médicos participantes do programa têm prazo inicial de quatro anos de trabalho na ESF, que é o tempo necessário para estarem aptos a fazerem a prova de título de MFC, além de poderem ser inseridos em programas de mestrado profissional durante sua participação. Com a previsão do governo federal de alcançar 28 mil médicos matriculados no programa até o fim de 2023, em breve teremos formado grande parte da força de trabalho médica especializada em MFC necessária para cobrir as necessidades da ESF.
A proposta atual do Mais Médicos tem o mérito de buscar uma solução eficiente para a escassez de especialistas em MFC no país, mas algumas questões precisam ser discutidas.
Limites
A primeira delas é a consequência para as residências em MFC já existentes. Por mais que se proponha como estratégia complementar para a formação de especialistas, a proposta atual, com remuneração bem acima das bolsas de residência e ofertas como o mestrado profissional associado, tende a esvaziar as vagas de residência médica, principalmente em programas de cidades do interior, que tem historicamente mais dificuldade de atrair médicos residentes.
Considerando que o oferecido pelo Mais Médicos são aditivos adequados para atração de profissionais, podemos propor a expansão desses mesmos atrativos para os programas de residência em MFC, a fim de não os esvaziar.
A formação dos médicos participantes do Mais Médicos também é um ponto de preocupação. Na residência médica, a presença da figura do preceptor, um especialista mais experiente que guia o aprendizado e serve de modelo para seus residentes, é talvez o fator mais decisivo na formação desses médicos.
Como no Mais Médicos, por sua escala e organização, não é possível garantir a presença de preceptores como no formato de residência médica, faz-se necessário garantir que as ofertas educacionais e o padrão de supervisão dos médicos participantes sejam suficientes para a formação de profissionais adequados para a assistência à saúde na ESF.
Uma outra questão a ser discutida é o vínculo trabalhista dos médicos do Mais Médicos. A forma atual de contratação desses profissionais é por meio de bolsas, financiadas pelo governo federal, sem a configuração de vínculo trabalhista.
Tal formato torna-se muito atrativo para os gestores municipais, que encontram nos médicos bolsistas uma solução para as restrições financeiras impostas pelo arcabouço legal brasileiro, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, que limita o gasto do poder público com recursos humanos em áreas como a saúde, e outras políticas de austeridade, como âncoras fiscais recentemente discutidas no legislativo.
Por outro lado, temos no momento um cenário no qual o Mais Médicos se torna a principal estratégia de provimento de médicos para a ESF a nível nacional por meio de contratação por bolsas. Esses profissionais permanecem por períodos prolongados vinculados ao programa, e os municípios não têm perspectivas de oferecer vínculos de trabalho mais atrativos para a força de trabalho médica.
E no longo prazo?
É inevitável, assim, discutirmos se esse caminho é sustentável a longo prazo. Se não for, quais as nossas opções enquanto sistema público de saúde? Modificar o arcabouço legal inspirado em políticas de austeridade fiscal não parece factível a curto prazo. Caminhamos então para a consolidação de um modelo no qual o governo federal é responsável pelo provimento de médicos na ESF a longo prazo? Caberia nesse cenário rever a forma de contratação pelo Mais Médicos, já que não consideramos adequada a criação de uma categoria bolsista como principal política para a força de trabalho médica no país.
Entendemos o Mais Médicos como uma política de Estado necessária para o provimento de médicos no país. Para que esse provimento seja efetivo, deve estar associado à valorização de profissionais com formação adequada (especialistas em MFC) para o trabalho na Estratégia Saúde da Família.
As estratégias e caminhos para um provimento de médicos sustentável a longo prazo deve ser discutida entre governo federal, estados e munícipios, envolvendo também os movimentos sociais, sindicatos e sociedades científicas da área.
Daniel de Medeiros Gonzaga é presidente da Associação de Medicina de Família e Comunidade do estado do Rio de Janeiro (AMFaC-RJ)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Elis Almeida