Minas Gerais

Coluna

Artigo | Literatura, luto e memória

Imagem de perfil do Colunistaesd
Foto dos livros "Jamais serei seu filho você sempre será meu pai" e "Manuscritos em grafite - Foto: Reprodução
É um enredo simples, mas uma trama complexa, com múltiplas narrativas

Nos últimos anos estivemos sob a égide de políticas de morte, de uma necropolítica. Vivemos tempos sombrios!

Não podemos nos esquecer das mais de 700 mil pessoas que morreram no Brasil nos últimos três anos, infectadas pelo vírus letal. São brasileiras e brasileiros que partiram antes do tempo! São nossas Marias, nossos Josés, nossos Joões, nossas Beneditas, nossas Joanas, Cecílias, Margaridas, Celestinos, Josefinos, Antônios, Arnaldos, Lúcias... e mais um incontável número de rostos conhecidos e desconhecidos que não voltaram.....

São nossos colegas que não voltaram! São nossos parentes que partiram! São nossos alunos e alunas...

 

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

Por eles e por elas, é preciso chorar e guardar o luto. É preciso elaborar o luto e transformá-lo em memória. É preciso, pois, palavrear a morte! Nós que cá estamos, precisamos fazer justiça aos nossos mortos e às nossas mortas. É preciso não deixar esquecer que 700 mil pessoas não morreram porque simplesmente foram infectadas pelo vírus. Eles e elas morreram, em boa parte, devido às políticas de morte abraçadas pelos que tomaram de assalto a República em 2016.

Fazer justiça a tantas pessoas que partiram fora de hora é não deixar esquecer que aqui morreram mais quatro, cinco ou seis vezes a média de outros países parecidos com o nosso. É não deixar esquecer que a pandemia não foi e não é democrática – ela tem a cara e a cor das gentes mais pobres e negras deste país.

Mas, sabemos também, que há algo do viver mesmo, que ultrapassados estes piores momentos da pandemia, nos conectam com a experiência da morte. Vivemos tempos sombrios porque, também, sombrias são as veredas e vales da morte, sombria é a face da morte, sombrio é, diz-se, o momento da morte e do morrer.

Nestes tempos em que vivemos, infelizmente, estes sentidos se articularam e se articulam continuamente. O pássaro de minerva alça voo ao anoitecer, falava Hegel. É uma sabedoria ancestral essa, a de elaborar o viver-se e o morrer-se. E a literatura, sem dúvida, é parte dela.

Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai

Outro dia, em Porto Alegre, em busca do livro "Os supridores", do José Faleiro, entrei na Livraria Taverna e lá me deparei com um título que logo me chamou a atenção: "Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai", do Thiago Souza de Souza, escritor gaúcho. Comprei-o.

A princípio pensava tratar de mais um livro sobre o "lugar do pai". E, sim, o livro trata disso. E muito mais! Das angústias pela perda do pai, ainda criança, devido a um erro médico, àquelas que marcam na contemporaneidade as dores do amadurecimento, acompanhamos a história do personagem que luta contra o esquecimento por meio de um intenso e demorado trabalho de luto.

É um enredo simples, mas uma trama complexa, com múltiplas narrativas, que são sustentados por múltiplas narrativas. Transformar as perdas, as lembranças e os esquecimentos em memórias é uma tarefa que nos é dada a todos, ainda que, por subterfúgios vários, tentemos fugir dela, parece nos lembrar Thiago Souza.

Manuscritos em grafite

Da mesma toada, ainda que em tons diversos e regionalidade distinta, é o livro "Manuscritos em grafite", da Rejane Paschoal, escritora pernambucana. No livro, um conjunto de contos, múltiplas vozes são mobilizadas para escavar e produzir memórias. Há aqui, mais do que um trabalho de luto (ainda que dele se trate também), acertos de contas para um partir em paz.

Os personagens e narradores de Rejane Paschoal nunca estão sossegados. Não se trata, no entanto, necessariamente, de pessoas angustiadas, mas de sujeitos que, conscientes da finitude, elaboram o partir.  Não é por acaso, me parece, que o último conto do livro tenha o sugestivo título de "Pequena fantasia para uma morte perfeita".

E ele termina assim: "Estou diante do retrato. Esperem por mim, eu já vou. Anoitece. Que sono. Estou em paz. Chegou a hora de me aquietar".

 

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo e doutor em Educação e Professor Titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

---

Leia outros artigos de Luciano Mendes de Faria Filho na coluna Cidades das letras no Brasil de Fato MG

---

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida