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Artigo | Os excluídos, quem somos?

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Imagem ilustrativa - Foto: Freepick
O capital escamoteia por meio da linguagem as contradições de classe

Há muitos anos li um textinho, daqueles de humor ácido dos anos 1970, que dizia mais ou menos assim: os pobres são miseráveis, carentes, simples, humildes, depauperados... Como se vê, os pobres continuam pobres, mas já contam com um rico vocabulário (para descrevê-los).  Lembrei-me disso outro dia ao pensar nas formas pelas quais, ainda hoje, mobilizamos a linguagem para instituir realidades alternativas àquelas que nos incomodam.

Mesmo no universo acadêmico, meio em que habito há algumas décadas, e nas mídias de um modo geral, ficou muito comum a gente ler que as pessoas pobres são humildes, carentes ou, mais recentemente, “desprivilegiadas”, como se simples ou carente fossem sinônimos de pobreza ou se o reconhecimento e afirmação, inclusive acadêmicos, de que num país que nega os direitos mais elementares à maioria da população (pobre!) bom mesmo é ter privilégios!

No entanto, é preciso considerar que essa “riqueza vocabular” expressa e produz uma problemática muito mais complexa, que recorta de alto a baixo toda a sociedade brasileira, que é a nossa dificuldade de lidar com a presença das “classes trabalhadoras” ou, mesmo, das “camadas populares” na cena pública e política brasileira.

Num processo iniciado talvez na década de 1980, mas intensificado nas primeiras décadas deste século, há um esforço imenso das mídias e dos ideólogos liberais, com o concurso, claro, de parte das ciências sociais, para expurgar do vocabulário, às vezes até  do acadêmico, o fato de que as classes sociais existem. E, portanto, não podem ser apagadas da cena pública e política, ainda que a polícia teime em apagá-las do mapa, literalmente.

O título deste texto é, obviamente, uma provocação. Como pode um homem hétero, branco e, agora, de classe média e com uma dilatada formação escolar, se dizer excluído?

O título, na verdade, quer trazer à tona a questão de que não devíamos naturalizar tanto a utilização da ideia da exclusão, logo, dos “excluídos” na nossa história. Trata-se de um termo com múltiplos sentidos e com alta carga política. De uma festa da família a uma reunião política, cada um de nós, ou seja, todos nós, já fomos ou nos sentimos excluídos.

Doutra parte, apenas para citar outro exemplo, a ideia de exclusão, ou dos excluídos, deveria remeter-nos à “exclusão” de quem, em algum momento, foi “incluído” ou estava dentro. Mas nem sempre é isto que ocorre.

A ideia de exclusão, ou dos excluídos, e, sobretudo, o sentimento que ela busca nomear, guarda uma universalidade que, no limite, pode contribuir para encobrir a realidade que queremos nomear ou expressar. Como, por exemplo, falar de exclusão de quem nunca foi incluído? Como falar que a população pobre, negra, indígena, periférica... foi excluída, por exemplo, do ensino superior público se ela, de fato, jamais foi incluída neste universo?

Bem sei que quando os sujeitos, individuais e coletivos, ou, mesmo, no universo acadêmico, falamos em exclusão queremos dar visibilidades a sujeitos específicos, as pessoas negras, indígenas, moradores das periferias, os sem-terra e sem-teto etc. E há grande legitimidade política nisto.

Por outro lado, há que se perguntar, também, se ao fazê-lo não estamos contribuindo para relativizar a clivagem fundamental que organiza e estrutura a sociedade (capitalista) brasileira que é relativa aos que dependem do trabalho para sobreviver e aos que vivem da exploração do trabalho dos outros.

Dizer isso não desconsidera o fato de que há, hoje, múltiplas categorias para descrever, analisar ou produzir os sujeitos e os fenômenos sociais. As pessoas são pobres, são trabalhadoras, mas devem ser consideradas em termos de gênero, geração, territórios, etnia, dentre outras possíveis e necessárias formas de identificação e classificação social.

Tenho ouvido em diversos lugares ultimamente que, inclusive, falar “pobre” é politicamente incorreto.  Penso que a gente deveria fazer uma história deste fenômeno que termina por substituir as classes trabalhadoras ou, mais genericamente, as populações pobres do país, por despossuídas, desprivilegiadas ou excluídas.

A quem interessa deixar de dizer, ou mascarar, o fato de que as pessoas excluídas são, ao fim e ao cabo, das classes trabalhadoras? Será que essa nossa recusa não acaba, ao fim e ao cabo, por reforçar os discursos tão em voga como, por exemplo, o do empreendedorismo e às sensibilidades que este provoca na juventude trabalhadora? Ou, de outra sorte, naturalizar a sociedade de privilégios (para alguns) que temos e desprezar a luta pelos direitos (para todos)?

Evocando o poeta que dizia que “viajar é preciso; viver não é preciso”, lembro que a linguagem nunca é precisa, é sempre polissêmica, mas também, e por isso mesmo, é sempre política.

Se queremos combater o capital e suas atrocidades em todos os campos da vida coletiva e individual, não devíamos esquecer o fato de que um dos grandes investimentos capitalistas é nas políticas das línguas.

O capital não cessa de nos oferecer alternativas linguísticas que escamoteiem as contradições fundamentais que organizam o mundo, em que algumas poucas pessoas ficam cada vez mais ricas às custas da pobreza da imensa maioria da população trabalhadora, ainda que, muitas vezes, sem trabalho.

 

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo e doutor em Educação e Professor Titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

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Leia outros artigos na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida