Toda leitura requer interpretação, que precisa ser sensata e libertadora
Invocado sob muitos nomes, mistério de amor que nos envolve e perpassa, Deus, segundo a Bíblia, se revela na história, nas entranhas dos fatos e acontecimentos que fazem a vida em sociedade. Assim, para quem acredita em Deus, a caminhada e lutas de libertação de todo e qualquer tipo de escravidão se dá na companhia amorosa de Deus.
A revelação de Deus se faz presente na transitoriedade humana, ou seja, no tempo e no espaço com a progressividade de um caminho com início, realização e o cumprimento em Cristo Jesus. Isso não significa dizer que seja um caminho sem tensões, retrocessos e avanços. O caminho da revelação divina se faz na história das lutas libertárias dos povos explorados e injustiçados e por meio da palavra que a interpreta e orienta.
Nas relações humanas e sociais dos acontecimentos históricos a iluminação interior confere ao profeta, a profetisa ou à comunidade de fé a inteligência de ler, à luz de Deus, os acontecimentos, seja pela palavra oral ou escrita, fazendo a leitura e a interpretação dos fatos e da realidade que nos envolve.
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A revelação bíblica não é mágica
Ela passa pela mediação humana não só porque a palavra chega até nós por meio dos profetas, profetisas e dos e das apóstolas e, por ser histórica, ela necessita da mediação para ser transmitida e atualizada para o ser humano e a comunidade que a acolhem. A revelação é o entrelaçar-se de movimentos históricos e sagrados da iniciativa livre e gratuita de Deus e das reflexões do ser humano para compreendê-la e abraçá-la.
A revelação é dialógica e pessoal por meio do encontro de Deus com o ser humano, que se coloca em uma atitude de escuta e de abertura ao mistério de amor que nos envolve. É um diálogo profundo, vital; não só troca de conhecimentos.
Deus fala com o ser humano para libertá-lo e torná-lo humano-divino. Podemos dizer que a revelação é, ao mesmo tempo, teológica e antropológica, porque revela o mistério de Deus e a vocação e missão humana. Deus revela o seu desígnio sobre o ser humano, a história, dá normas de conduta, explica os acontecimentos que são dados ao ser humano para viver, conviver e lutar para que um projeto de vida para todos e todas se torne realidade: o Reino de Deus a partir do aqui e do agora.
Deus se revela em uma comunhão de pessoas, em um diálogo de conhecimento e de amor, no qual o ser humano é inserido pela fé, que é disposição existencial para acolher e lidar com o mais profundo do nosso ser.
A revelação divina manifesta-se trinitária em que as três pessoas da Trindade Santa estão na origem com modalidades próprias da revelação: o Pai tem a iniciativa de buscar comunhão com o ser humano; Jesus Cristo é a revelação plena do amor do Pai e do Espírito Santo, que interpreta e atualiza as palavras, gestos e sinais que Jesus realizou. Jesus Cristo é revelador do Pai e do Espírito Santo e de si mesmo, ao realizar o projeto do Pai/Mãe, repito, mistério de infinito amor. Jesus é o revelado: “Tu és meu Filho amado, em ti me comprazo” (Mc 1,11) como também na transfiguração: “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo, ouvi-o” (Mt 17,1-8).
Em Jesus Cristo a revelação encontra o seu cumprimento pleno. Enquanto no Primeiro Testamento a espera de Cristo é incompleta e ainda não realizada, no Segundo Testamento bíblico, mesmo que o Cristo seja a revelação máxima, essa será plena só na escatologia, no fim dos tempos; enquanto estamos no tempo presente, resta sempre uma revelação na fé.
Como se dá a inspiração dos textos bíblicos?
No documento do Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina, Dei Verbum, os Padres conciliares afirmam, com convicção, que todos os escritos da Sagrada Escritura foram inspirados pelo Espírito Santo.
Como esses livros foram escritos por homens e mulheres, à maneira humana, quem interpreta as Sagradas Escrituras deve investigar com atenção o que os hagiógrafos quiseram dizer e aprouve a Deus revelar por meio deles e delas.
Para isso, devem ser levados em conta os gêneros literários para descobrir o sentido que os hagiógrafos, segundo as condições de tempo e cultura, quiseram expressar. Havia entre pessoas de Deus, profetas e profetisas, sacerdotes e sábios dos Povos da Bíblia (Jr 18,18) que foram considerados mediadores da mensagem divina, cuja autoridade é inquestionável.
Óbvio que, como na busca do ouro é preciso peneirar o que está junto com o ouro, mas não é ouro, ao ler um texto bíblico precisamos interpretar, ou seja, peneirar o sentido que possivelmente é mensagem divina e o que o autor colocou ali pelos seus condicionamentos culturais, sociais e religiosos.
Quando os autores do Segundo Testamento citam o Primeiro Testamento bíblico, referem-se aos seus autores e autoras, aos quais conferem um valor divino. A Igreja reconhece também nas palavras desses profetas a presença de um carisma semelhante ao dos antigos profetas (Lc 1,70; At 2,24). As cartas do Apóstolo Paulo circulavam entre as comunidades, eram lidas e refletidas por elas, conforme nos informam as próprias cartas (Cl 4,16; 1Ts 5,27).
Depois de considerarmos a Revelação divina para a humanidade por livre iniciativa e por amor, lembrando que Deus inspirou homens e mulheres ao longo da história, para registrarem a experiência humana, social e religiosa que o povo fez com o mistério de amor que nos envolve, não podemos esquecer que a Bíblia é uma biblioteca. São 73 livros, ou seja, a Bíblia é obra literária.
E como tal deve ser interpretada. É ingenuidade e erro grave dizer: “a Bíblia basta ser lida e colocada em prática”.
Toda leitura suscita e requer interpretação, que precisa ser sensata e libertadora. Não podemos sair catando versículos e citando-os para justificar nossos preconceitos e posturas muitas vezes moralistas e fundamentalistas, o que recai em idolatria.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG, graduado em filosofia pela UFPR e em teologia pelo ITESP/SP, mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, agente e assessor da CPT/MG, assessor do Cebi e das ocupações urbanas e professor de teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica).
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida