Os mais de 45 municípios atingidos da bacia do Rio Doce, nos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, vivem a angústia de estarem cada vez mais distantes da possibilidade de voltar a ter a mesma fonte de renda e alimentação que tinham há oito anos atrás, desde o rompimento da barragem de Fundão, ocorrido em 5 de novembro de 2015.
De acordo com o estudo intitulado “Diagnóstico Socioeconômico e Avaliação de Impactos do Rompimento da Barragem de Fundão a partir da Pesquisa Domiciliar Participativa”, elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) na função de expert do Ministério Público Federal (MPF), foi identificado que 44% das pessoas atingidas da bacia do Rio Doce que foram entrevistadas, exerciam o mesmo trabalho ao longo de toda a vida. Além disso, a pesquisa demonstrou ainda que a causa para a interrupção da atividade laboral nesses casos, foram justamente os impactos decorrentes do rompimento.
O estudo, finalizado em novembro de 2022, foi disponibilizado na página virtual do Ministério Público Federal em maio deste ano. Nele, a maior parte dos entrevistados (59%), teve acesso às primeiras atividades de trabalho (remunerado ou para consumo próprio) junto dos pais e avós.
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“A maior saudade que eu tenho é meu pai trabalhando junto comigo, minha mãe trabalhando, a gente mexendo, carregando nossas caixas de fruta, nossa plantação, enchendo nosso paiol das coisas que a gente colhia, vendendo.” relata Felipe Godoy, da comunidade de Ponta do Tomazinho, em Timóteo/MG, sobre as alterações nos modos de vida da família após o rompimento.
Improdutividade da terra após o rompimento afetou renda
A profª Carolina Saraiva, coordenadora do Observatório em crítica, formação e ensino em administração da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) explica que a “barragem causou uma alteração nos significados dos modos de vida dos atingidos”.
São recorrentes os relatos sobre a improdutividade da terra após o rompimento, o que afeta significativamente a renda das famílias que viviam do plantio. “Não tem condição da gente plantar nada, o que planta não dá”, reforça Felipe.
Muitas famílias atingidas tinham como fonte de renda a pesca, o cultivo de hortaliças, frutas, legumes, assim como o manejo de animais e a produção de leite, queijo, dentre outras atividades que também dependiam do uso do rio como areeiros e faiscadores.
Em todos os casos, as produções eram destinadas ao consumo próprio e fonte de renda das famílias. “Hoje a gente tem que trabalhar mais para ganhar menos, para produzir menos”, aponta Marlene Imaculada (Lelena), da comunidade atingida de Celeste, em Marliéria/MG, que explicou que hoje perdeu a diversidade de produção e passaram a plantar apenas couve por ser uma hortaliça mais resistente.
Atividade pesqueira: renda, pertencimento e perda de vínculo
Creusa Fernandes, atingida da comunidade de Revés do Belém, em Bom Jesus do Galho/MG destaca que a pesca é uma importante atividade de geração de renda, lazer, pertencimento, memória e alimentação. “Antes eu olhava para um peixe, era o meu alimento. Era uma forma de ganhar dinheiro", diz.
Segundo Karina Coelho, antropóloga e Assessora Técnica da Cáritas Diocesana de Itabira, existe ainda um processo de se pensar a pesca não só como a captura do peixe, mas que também há uma relação íntima dos atingidos com o rio. “A pesca não é somente uma atividade econômica, ela fala sobre um povo que vive às margens dos rios, cachoeiras, lagoas e que tem nessa relação com as águas um meio de viver, um modo de viver, que constroem os seus corpos nessa relação com o rio”.
Creusa revela o sentimento de tristeza por não ter a oportunidade de vivenciar junto da filha mais nova as experiências que teve com o rio, “a Maria nasceu depois do rompimento, ela nunca vai viver o que eu vivi”, lamenta.
Nesse sentido, a antropóloga reforça que o fato de as comunidades não poderem realizar as atividades de costume geram perdas inestimáveis. “O rio morreu, os peixes acabaram, mas está se acabando também determinado tipo de pesca, a exemplo do que se faz no barranco. Tem mulher que fazia artesanato com barro do rio e que não vai mais fazer, então, são modos de vida, modos de conhecer e modos de fazer as coisas e de existência que vão se encerrando, que tem suas continuidades ameaçadas”, conclui.
Falta de registros impede que os danos reais dos atingidos e atingidas sejam mapeados
Os cadastros são uma alternativa importante para que os atingidos e atingidas estejam registrados no sistema da Fundação Renova, responsável pela reparação, e tenham a possibilidade de solicitar o acesso a um dos programas indenizatórios. Por isso, a ausência dos cadastros é motivo de angústia para as comunidades. “Quando batemos na porta da Samarco, da Fundação Renova, eles falam simplesmente que o cadastro encerrou. A gente está esquecido”, aponta Felipe.
Além disso, a falta de registros fiéis sobre qual a totalidade das pessoas atingidas e dos seus reais danos impedem uma reparação efetiva. A forma como o cadastramento ocorreu invisibilizou a situação das pessoas atingidas, o que gera prejuízos diretos em relação às medidas indenizatórias. É o aponta a “Análise do Auxílio Financeiro Emergencial”, elaborado pela FGV em 2022, identificando uma série de limitações em relação ao desenho e execução dos cadastros.
Nesse sentido, a análise mostra as principais deficiências, entre elas: o não reconhecimento de pluriatividades econômicas na bacia; o processo de cadastro realizado pelo “respondente” por núcleo familiar, em sua maioria homens e a categorização indevida ou não motivada como “ausência de impacto direto”, excluindo atingidos da participação em outros programas socioeconômicos tais como o AFE.
Todo esse processo, gera um esforço das pessoas atingidas junto das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) para que haja um reconhecimento enquanto atingidos, assim como dos danos materiais e imateriais que sofreram.
Suspenso após decisão judicial da 12ª Vara Federal Cível e Agrária da Seção Judiciária de Minas Gerais, os cadastros das pessoas atingidas têm sido feitos pela Fundação Renova para aqueles que fizeram o pedido até 31 de dezembro de 2021. Para quem não solicitou até a data final, ele segue suspenso após a decisão.
“De Marliéria, nenhuma pessoa física recebeu até hoje. Nós ficamos com nosso prejuízo”, indica Lelena, ao explicar a situação da comunidade onde vive sobre a ausência de medidas indenizatórias.
Dificuldade de acesso às informações impedem mapeamento das ações de reparação
Embora a Fundação Renova divulgue dados sobre a reparação no Portal da Transparência, a forma como essas informações são percebidas pelas pessoas atingidas e o modo como a Fundação disponibiliza os dados da sua execução dificultam o monitoramento das ações que estão sendo executadas nos municípios e com as pessoas.
No dia 14 de fevereiro deste ano, por exemplo, conforme publicação feita no site do Ministério Público Federal, houve um caso de discordância entre os valores realmente utilizados e o que foi repassado publicamente nas plataformas digitais da Fundação.
De acordo com a publicação, foi necessário que o MPF, por meio de ofício, solicitasse informações reais sobre os dados que envolvem as indenizações e auxílio financeiro emergencial (AFE) repassadas no ano de 2022 às pessoas atingidas. À época, o valor divulgado pela Renova para o último ano foi de R$ 4,7 bilhões, aproximadamente R$ 1,6 bilhão a mais do valor que de fato foi utilizado, que corresponde a R$ 3,07 bilhões.
Outro lado
A Fundação Renova respondeu em nota que “até agosto de 2023 foram destinados R$ 32,66 bilhões às ações de reparação e compensação. Desse valor, R$ 13,17 bilhões foram para o pagamento de indenizações e R$ 2,55 bilhões em Auxílios Financeiros Emergenciais, totalizando R$ 15,72 bilhões para 431,2 mil pessoas”.
Edição: Elis Almeida