Passados oito anos do rompimento da barragem Samarco, controlada pelas mineradoras Vale e BHP Billiton, em Mariana, atingidos ainda não foram reparados pelo crime socioambiental, que deixou 19 mortos, contaminou o Rio Doce, o solo e o ar, e destruiu modos de vida das comunidades ao longo de toda a bacia.
Em 2016, a Fundação Renova foi criada para conduzir o processo de reparação. Porém, até hoje, a maior parte das famílias impactadas sequer foram indenizadas pelas perdas que sofreram.
Uma das assessorias técnicas independentes que atuam na região, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) afirma que, entre os atingidos acompanhados pela entidade, mais de 60% relatam que nunca receberam nenhum tipo de auxílio financeiro ou indenização.
“Cerca de 65% das pessoas que atendemos não receberam nada, nenhum tipo de pagamento, indenização ou auxílio financeiro. Nós também já apuramos que 76,58% das pessoas nunca receberam auxílio financeiro emergencial e, dessas, 91,18% disseram que a Renova sequer explicou o motivo da negativa”, relatou Franciene Almeida, que é coordenadora institucional da Aedas, durante uma manifestação dos atingidos na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
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Letícia Oliveira, da direção do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), explica que o cenário é ainda mais grave. Segundo ela, a Renova afirma que já indenizou 80 mil pessoas. Porém, o MAB estima que um milhão de pessoas foram atingidas pelo rompimento.
Ela destaca que a fundação e as próprias mineradoras estabelecem os critérios para definir quem foi ou não foi impactado pelo crime. Como consequência disso, existe uma grande quantidade de famílias atingidas que nem mesmo foram reconhecidas.
“Tem muitos atingidos que ainda não foram reconhecidos como atingidos e não receberam nada até hoje. O controle da reparação está todo na mão da Renova. Os atingidos ficam à mercê do que a fundação decide fazer”, avalia Letícia.
Gastos com propaganda
Em outubro deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) e outras instituições de Justiça (IJ) que atuam no caso – Defensoria Pública da União (DPU), Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPMG), Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (DPES) e Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) – determinaram a suspensão das propagandas publicitárias da Renova.
Segundo as IJ, as campanhas da fundação eram pouco transparentes e desviavam de sua finalidade. Além disso, as instituições também averiguaram que apenas entre janeiro e maio de 2023, quase R$ 4,5 milhões foram gastos pela entidade com mídia.
Justiça lenta
Uma das principais reclamações dos atingidos é a lentidão da responsabilização dos culpados pelo crime. Quase uma década após do rompimento, até hoje, ninguém foi condenado. Além da Vale e da BHP Billiton, outras duas empresas foram denunciadas pelo MPF em 2016, a Samarco e a VogBR.
Na ocasião, o órgão também denunciou 21 pessoas físicas por homicídio, crime ambiental, lesões corporais e desabamento. Três anos depois, em 2019, as acusações de homicídio e lesão corporal foram retiradas de todos os denunciados pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Além disso, dos 21 citados inicialmente, restaram processos contra apenas 11.
Ao mesmo tempo, está em curso a discussão entre o governo de Minas Gerais, as mineradoras e as instituições de Justiça a elaboração de um acordo de repactuação, que construiria novos termos para a reparação.
Porém, Letícia Oliveira, do MAB, destaca que, além da lentidão da Justiça, a discussão sobre a repactuação tem acontecido sem a participação dos atingidos, o que impede que seus interesses sejam considerados.
“A Justiça tem atuado de forma muito lenta e o processo deveria ser mais agilizado. Nós não temos informação sobre a repactuação. O processo é feito a portas fechadas. A grande questão é a falta de participação”, relata.
Caderno de respostas
Fruto das mobilizações do MAB, o governo federal entregou, na segunda-feira (6), um caderno de respostas aos atingidos. O documento contou com a participação de nove ministérios e sintetiza os compromissos da gestão com as principais reivindicações do movimento.
Entre as pautas centrais, aparecem a criação da Política Nacional de Direitos dos Atingidos por Barragens (PNAB) e do Fundo Nacional aos Atingidos por Barragens do Brasil.
No texto, o governo afirma que irá “articular e coordenar os órgãos de governo para que a proposta de regulamentação da PNAB seja produzida no menor prazo possível e em diálogo com os atingidos e atingidas do MAB”.
Durante a cerimônia de entrega do caderno de respostas, que aconteceu em Brasília, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Márcio Macêdo, destacou a importância de um processo justo de repactuação.
“É preciso que tenha uma repactuação justa, honesta, que possa verdadeiramente atender aos atingidos pela barragem. Isso não se paga, mas tem que ser reparado e é isso que nós queremos fazer”, disse o representante do governo.
Direito à moradia
Desde o rompimento, sem considerar as vítimas fatais diretas do desastre, quase 120 moradores das comunidades atingidas morreram sem ser reparados, segundo um levantamento da Cáritas MG.
Um dos direitos não garantidos até os dias de hoje para parte dos atingidos é o acesso à moradia. Nas comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, por exemplo, que foram devastadas pela lama, os novos reassentamentos tiveram as primeiras casas entregues apenas neste ano.
Segundo dados da Renova, 234 imóveis destinados aos distritos estão com as obras finalizadas, porém, a fundação precisa entregar 341.
“É um processo muito lento e não há explicação para ser lento dessa forma. Porque a empresa tem condições de fazer. Ela diz que os atingidos atrasam o processo”, avalia Letícia do MAB.
Na comunidade de Gesteira, a situação também é grave. A Renova indica que 22 famílias foram impactadas pelo rompimento. Porém, os moradores calculam que foram 70. No distrito de Barra Longa, a “parte baixa” foi diretamente atingida pela lama.
Os atingidos denunciam que, além da demora para a entrega das casas e o não cumprimento de prazos, até mesmo a “parte alta” da comunidade está sofrendo com casas trincadas, devido ao fluxo de caminhões da Renova.
Quem convive diretamente com essa realidade é Maria Francisca, de 75 anos, que atualmente mora em uma casa alugada pela Renova, porque o imóvel anterior sofreu danos pela atuação do maquinário da fundação. Porém, o proprietário da casa quer o imóvel de volta, não existe mais outros locais para alugar na comunidade e a casa que deveria ser entregue para ela nunca ficou pronta.
“Eles [a Renova] não vêm me avisar como vai ser, para onde eu vou. A minha casa está “rachada”, eles ficaram de arrumar outra para mim, mas não entregaram até hoje. Já são oito anos e deu muito tempo de eu sair daqui e mudar para lá. Eu não queria sair lá de baixo e eles disseram para eu sair que em poucos dias iam arrumar a minha casa”, lamenta a atingida, para a campanha Revida Mariana, do MAB.
Outro lado
A Renova, em nota, afirmou “a reparação começou logo após o rompimento da barragem de Fundão”. Segundo a fundação, foram solucionados 405 casos de restituição do direito à moradia com a entrega do imóvel ou o pagamento de indenização, e outros 284 já têm solução definida, de um total de 719 casas, comércios, sítios, lotes e bens coletivos.
Nos reassentamentos coletivos de Bento e Paracatu, ainda segundo a Renova, 72 imóveis (casas, comércios, sítios e lotes) foram entregues aos novos moradores. Dos 248 imóveis previstos em Bento, 168 estão com obras finalizadas. Em Paracatu, dos 93 imóveis previstos, 66 estão com obras finalizadas até 29 de setembro.
Edição: Larissa Costa