Consciência crítica se desenvolve a partir das práticas culturais afro-brasileiras
Na campanha eleitoral de 2022, levantamos a bandeira da capoeira e buscamos conscientizar esse amplo segmento da cultura afrodiaspórica da necessidade da participação e de representação política. Um público que ainda não fora testado eleitoralmente.
Passado um ano das eleições, hoje possuímos dados empíricos que atestam a viabilidade eleitoral da capoeira, a viabilidade de uma candidatura apoiada pela capoeira. Mas, à época, esses dados não existiam.
Conscientes de nossos propósitos, mantivemos empunhados os Berimbaus e as bandeiras da capoeira. Tal opção se deu porque concebemos o papel estratégico da capoeira no contexto de uma política de resistência cultural afro-brasileira e não apenas como um reduto eleitoral.
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Processo colonizador
Para além do branqueamento da pele, o processo colonizador buscou impor aos africanos e aos seus descendentes no Brasil os padrões culturais europeus, de modo que o objetivo seria o branqueamento do corpo e da alma. Ambos extremamente violentos, física e simbolicamente.
Quando consideramos a escola - mesmo as que seguem as leis que obrigam o estudo de temas afro - pelos conteúdos que ensinam e os que deixam de ensinar, observamos que o processo de branqueamento do espírito continua em progresso.
Uma vez que, quanto mais nos inserimos na cultura intelectualizada, ou seja, quanto mais começamos a pensar por categorias, conceitos, dentro do domínio das disciplinas, quanto mais negamos a corporeidade, nos livramos das paixões e dos sentimentos, mais branca nossa alma vai ficando.
Resistência cultural
Por óbvio, não se trata de retirar as crianças da escola ou os jovens das universidades. Ter o domínio da linguagem do colonizador, poder ocupar postos melhores no mercado de trabalho, realizar a igualdade pretendida pela luta antirracista é desejável.
Entretanto, do ponto de vista da resistência cultural, não basta aumentarmos o número de médicos negros, por exemplo. É preciso que esses médicos consigam tecer, a partir de uma cosmovisão afrocentrada, a crítica a essa medicina que separa o indivíduo do social, o corpo do espírito, a saúde da doença e a vida da morte.
Essa consciência crítica se desenvolve a partir das práticas culturais afro-brasileiras, sendo que elas são as guardiãs de saberes ancestrais que se preservaram mais ou menos intactos durante o longo processo colonizador. Ao nos deixarmos conduzir por seus processos iniciáticos, vamos absorvendo uma cosmovisão afrocentrada, o que nos permite criticar mesmo as ditas teorias críticas ocidentais.
Capoeira no contexto da resistência cultural afro-brasileira
Em nossa tese de doutoramento, fruto de 25 anos de prática de capoeira angola, chegamos ao entendimento de que a capoeira tem uma função muito especial no contexto da resistência cultural afro-brasileira.
Sendo uma verdadeira arte da guerra ágrafa, a capoeira permite aos seus praticantes acesso às estratégia e táticas de guerra dos povos Bantus. Essas estratégias podem ser utilizadas para a vida, que não deixa ser uma luta.
Não por acaso, os mestres-salas das escolas de samba eram mestres de capoeira. Sua função é a de ir à frente, defender a bandeira e abrir os caminhos, e é essa a função da capoeira, ela abre caminhos para que o restante da cultura afro possa passar.
Por isso acreditamos na capoeira. Para nós, incentivá-la é muito mais do que um mero projeto eleitoral. É garantir a resistência a existência futura dessa cultura maravilhosa, que, por mais que tentem apagar, teima em existir.
Dimas Antônio de Souza é professor de ciência política do Instituto de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e escreve quinzenalmente para esta coluna. Twitter: @prof_Dimassouza; Instagram: @prof.dimasoficial
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Leia outros artigos de Dimas Antônio de Souza na coluna Vela no Breu, no Brasil de Fato.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Elis Almeida