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Artigo | Rei e rainha da pipoca: uma prática colonial e excludente

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Imagem ilustrativa - Foto: Pixabay
Prática estimula competividade, não a solidariedade

Cleiton Donizete Corrêa Tereza

Infelizmente, persistem diversas práticas abomináveis nas escolas brasileiras. Atividades, eventos, falas, regras, posturas que demonstram problemas estruturais na sociedade brasileira e na educação, que resultam em reproduções de violências e exclusões.

Entre essas práticas, poucas delas são tão cruéis quanto a realização de concursos intitulados, geralmente, como de “Rei e rainha da pipoca”, que em certas lugares e períodos do ano podem ser “do amendoim”, “do milho”, “do café”, ou qualquer outro produto proeminente da economia local.

Antes que alguém venha dizer algo que “isso é mi, mi, mi”, ou alguma outra coisa parecida, que demonstre a reduzida sensibilidade ou pensamento crítico,É importante enfatizar que a continuidade dos problemas na educação brasileira está profundamente ligada à formação insuficiente dos professores, às precárias condições de trabalho docente, à disseminação de normas coloniais de instrução e à incorporação de ideologias capitalistas neoliberais. Ou seja, trata-se, evidentemente, de elementos históricos e sistêmicos.

No sul de Minas Gerais, por exemplo, os concursos de Rei e Rainha da pipoca são realizados geralmente em festas juninas ou julinas. Atividades marcadas pelo estilo quermesse, contando, assim, com barracas, sorteios de prendas, bingos, apresentações de danças, comidas e bebidas, realizadas por paróquias, escolas, associações, dentre outros.

Para a escolha do rei e da rainha da pipoca são vendidos votos, que resultam em arrecadações financeiras para as instituições promotoras do evento e os vencedores recebem faixas, brinquedos e outros presentes.

Competitividade e exclusão

O primeiro problema desse tipo de prática pedagógica nociva, pensando em uma aprendizagem solidária e humanista, é que ela estimula a competitividade excessiva. Em geral, as escolas, para falar do pedaço que conheço muito bem, dissimulam sobre os problemas relacionados a essa competividade, afinal, como é sabido, é preciso arrecadar.

Nas sulfurosas terras de Poços de Caldas, durante a pandemia, teve até concurso pelas redes sociais, promovido por uma escola particular, noticiado por uma rede de TV regional. Quem seriam os vencedores? Aqueles que tivessem mais curtidas.

Nesse processo, existem famílias que entram com tudo na disputa, mobilizando diversas pessoas, pressionando, desqualificando determinadas crianças e famílias e até fazendo usos questionáveis de certas características.

Em Patos de Minas, outro exemplo: em reportagem realizada para a NTV, um casal comemorava a vitória da filha autista, que teve como campanha (com banner e tudo): lugar de autista é em todo lugar. Na tentativa de ressaltar o aspecto inclusivo, quantas crianças não foram excluídas desse podium?

Nobreza x democracia

Outro aspecto impressionante é como ainda persistem as romantizações em relação à nobreza. Historicamente, do mundo antigo à contemporaneidade, essa camada social foi responsável por explorações e agruras de toda sorte.

Ainda assim, as pessoas, professores e professoras inclusive, a continuam venerando. Seja por meio de discutíveis heróis bíblicos, séries e filmes de países imperialistas, tatuagens de coroas para homenagear os pais, picnics vitorianos, elogios cotidianos às pessoas queridas, manifestam-se as idealizações de reis, rainhas, príncipes, princesas, condes, marqueses, sultões, paxás, etc.

Não é por acaso que cresce no Brasil o número de pessoas que defendem o retorno à monarquia. Uma educação democrática deveria questionar o reforço dessas imagens e tudo que elas representam. Porém, na escola, muitas vezes, se faz o oposto:  “elegem” o rei e a rainha, coroam, colocam faixas, capas e conferem até um cetro, em certas ocasiões, aos pequenos senhores.

Além dos absurdos anteriores, o mais notável, é o racismo. Isso infelizmente não é novidade, há muito o que fazer no combate ao racismo nas escolas. E mesmo que não seja irrelevante, a questão da representatividade não resolve tudo, como quer nos convencer a lógica neoliberal.

Nas escolas ainda faltam referências negras e esses concursos acentuam ainda mais a discriminação étnico-racial, porque ainda é forte na mentalidade da população que as pessoas brancas e loiras são mais talentosas e bonitas. Pesquisem por reis e rainhas da pipoca nos sites de busca e vejam os resultados.

Em uma das escolas em que trabalho, com grande presença de estudantes pretos e pardos, o rei e a rainha da pipoca 2023 foram brancos. Lembro também da minha infância na escola, quando alunos, mas principalmente alunas negras, eram preteridos na hora da escolha de pares para a quadrilha. Isso não mudou tanto... e não é por acaso.

Outros sujeitos, outras pedagogias

Diante de tantas implicações, continuar a realizar esse tipo de concurso, nesses moldes, é dar sequência a uma experiência escolar pautada pelo interesse financeiro, pela apartação sociorracial e práticas de dominação e exclusão, desde cedo, como se fosse sempre algo lúdico, inofensivo. Porém, um olhar atento revela o contrário.

É preciso insistir no reconhecimento e elaboração de outras sociopedagogias, pautadas pelos pensamentos, reivindicações e movimentos dos coletivos sociais subalternizados, como afirma Miguel Arroyo, no livro “Outros Sujeitos, outras pedagogias”.

Sociopedagogias que ressaltem os trabalhadores, não os nobres, seus títulos e cafonices; que valorizem afetos de alteridade e verdadeira inclusão, não de competição e apartação; para que tenhamos escolas de diversidade, humanização e criatividade, não de reforços de padrões midiáticos e manutenção de tradições coloniais seletivas.

Cleiton Donizete Corrêa Tereza é professor de História nas redes municipal e estadual em Poços de Caldas, especialista em História Contemporânea (PUC Minas), especialista em Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a Distância (UFF), mestre e doutor em Ciências Humanas (Diversitas-FFLCH-USP), integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração Escolar (GEPAE-USP), membro do Coletivo Educação de Poços de Caldas e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida