Minas Gerais

SAÚDE

Artigo | Salvemos o SUS

A AGSUS permite que o governo contrate uma empresa privada para gerência da Atenção Indígena e a Atenção Primária

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
"O SUS era o único sistema universal popular de saúde do mundo." - Foto: Fábio Rodrigues/ Agência Brasil

A velocidade da necropolítica sempre nos surpreende. Não é que dia 20 de novembro de 2023, o governo federal por meio do Decreto 11.790 decretou a privatização do SUS? Vamos explicar.

No nascimento do Sistema Único de Saúde (SUS) admitiu-se a contratação de prestadoras de serviço privadas e filantrópicas, de forma complementar, em conformidade com os artigos 4, 24 e 25 da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080/1990). A intenção era a substituição gradual das entidades privadas por entidades públicas e estatais, já que na década de 1990 não havia serviços e equipamentos públicos suficientes. 

O SUS era o único sistema universal popular de saúde do mundo. Era porque, desde o golpe institucional e jurídico de 2016, não é mais. Decisões populares emanadas de conferências e conselhos não são mais acatadas e a legislação no país sempre foi seguida conforme a conveniência dos poderosos. Dessa forma o SUS foi se esvaziando dos seus princípios e diretrizes mais caros.

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

Na verdade, desde o governo Bolsonaro, pode-se afirmar que não há mais Sistema Único de Saúde, mas Cobertura Universal de Saúde (CUS), já que a Portaria GM/MS nº 26, de 7 de janeiro de 2022, estabeleceu que o investimento federal para a saúde não se dá mais por área de abrangência/territórios, mas por per capita (por pessoa atendida) e por cadastro na Atenção Primária à Saúde.

O SUS deixa de manter a cobertura por territórios adscritos e suas singularidades, negligenciando, entre outras, as ações de promoção e prevenção de saúde, centrando o financiamento nas demandas ativas de “indivíduos” que só são da responsabilidade do SUS quando ativamente procuram um serviço de saúde pública. 

O SUS de origem era universal por ser um direito de todos, independentemente de idade, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas e sociais ou qualquer outra condição. Era universal e integral por não se restringir à perspectiva de combater a doença, mas de promover a saúde e a qualidade de vida. 

Agora o bom leitor deve se perguntar: Ora, se o SUS virou CUS e na verdade já morreram mais de 700 mil pessoas de covid-19 e já estamos lavrando as consequências no corpo desse desastre, porque é pertinente em 2023 dizer que o SUS está morto? 

A questão é que estávamos num momento de quebra democrática. Dessa forma, a nossa ingenuidade, de quem luta pelo SUS há anos (alguns há décadas), nos sugeria que se tratava de um desmonte, uma política de governo. Para o terror de todo brasileiro, devemos ter a ética de declarar que o desmonte do SUS se tornou política de Estado.

Sim, o governo mudou, mas a política de saúde, com base em financiamento pela Cobertura Universal de Saúde (CUS), não mudou. A lógica de repassar dinheiro público, trabalhadores e infraestrutura para entidades privadas não mudou. A não observância das deliberações de conferências de saúde também. Devemos nos recusar a chamar essa abominação que vivemos na saúde do país de SUS. É CUS. Não é SUS.

Decreto 11.790

E isso se consagra derradeiramente no Decreto 11.790, de 20 de novembro de 2023, que funda a Agência Brasileira de Apoio à Gestão do SUS (AGSUS), inspirado no decreto de Bolsonaro. A AGSUS permite que o governo contrate uma empresa privada para gerência da Atenção Indígena e a Atenção Primária no país, o Mais Médicos e outros.

O Ministério da Saúde agora não mais vai gerenciar o SUS, fará em parceria com empresa privada. É isso mesmo. Inclusive quem vai fiscalizar e deliberar sobre a política não é mais o Conselho Nacional de Saúde, é uma empresa privada, cujo conselho fiscal terá apenas uma cadeira para o Conselho Nacional de Saúde, o que vai causar a preponderância de entidades médicas, sem a participação de outras categorias profissionais.

É importante relembrar que as entidades médicas foram o braço direito do desgoverno anterior durante a pandemia, disseminando o uso indiscriminado de cloroquina, desestimulando o uso de máscara e questionando a validade de vacinas. 

Perdemos nosso patrimônio e com ele perdemos a concepção de que o Estado deve investir em algo que não seja a concentração de renda nas mãos de poucos. Perdemos essa dimensão do investimento público como investimento no povo, que não precisa gerar lucro para magnatas para justificar sua existência.

O atual governo se colocou nas eleições exatamente como oposição a esse tipo de necropolítica. Um governo de frente amplíssima que sem pressão popular não avançará em agendas progressistas. Não é à toa que o próprio presidente Lula falou que os movimentos sociais precisam tensionar o governo. 

Mas esta carta não pretende trazer pânico às leitoras e aos leitores. Na verdade, é uma provocação. Se lutamos contra o fascismo bolsonarista, agora temos que ir adiante e reconhecer que o Brasil se funda num pacto genocida e racista, colonial e servilista.

Reconhecer isso é importante para não nos tornarmos gado mugindo pelo golpe de estado fascista, nem ficarmos estagnados na paralisia da angústia. Não há, na política, heróis, messias ou salvadores que irão magicamente “mudar o país”. Não haverá governo que nos salvará.

Somos nós que sempre nos salvamos a nós mesmos. Foi o povo que fundou e construiu o SUS, bora juntar nos movimentos sociais e avante na luta!


Núbia Cruz é assistente social, sanitarista, ex-servidora pública do SUS de Belo Horizonte.

Laura Fusaro Camey é bióloga e usuária da Rede de Atenção Psicossocial de Belo Horizonte.

---

Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Larissa Costa