A dignidade do ser humano tem de ser buscada aqui e lá fora
A guerra entre Israel e Palestina traz consequências, diretas ou indiretas, para o mundo todo, inclusive para o Brasil. Uma tragédia que nos faz pensar em valores mínimos de civilidade. Na política externa, o Brasil tem uma diplomacia profissional e eficiente, e uma reputação de país neutro, não antipatizado, a priori, por outros países ou povos. Um tremendo ativo geopolítico, que nem o tresloucado e patético governo anterior, de extrema direita, conseguiu dissipar.
Tem, ainda, como governante, um dos líderes internacionais mais respeitados da atualidade, Luiz Inácio Lula da Silva. Nos jornais do mundo, a voz de Lula sobre o conflito sempre é destacada. A postura diplomática do Brasil tem sido ao mesmo tempo firme e equilibrada: condenou a ação do Hamas sem esquecer a responsabilidade pregressa de Israel, nem deixar de condenar sua sangrenta resposta, totalmente desproporcional à agressão sofrida, e sem negar solidariedade ao povo palestino, que não deve pagar, em seu conjunto, pelos atos do Hamas.
Além disso, o governo Lula organizou, de forma ágil e competente, a repatriação de seus cidadãos, tirando-os da zona de conflito. As consequências da guerra para o Brasil não se resumem, entretanto, à diplomacia e ao resgate de brasileiros. O conflito pode afetar o projeto de reeleição do presidente estadunidense Joe Biden e a configuração dos BRICS, e isso nos diz respeito.
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Há quem advirta que o suporte decisivo de Joe Biden a Israel possa lhe prejudicar eleitoralmente. Os governos estadunidenses, democratas ou republicanos, têm apoiado sistematicamente Israel, nas últimas décadas, assim como a maioria da opinião pública do país. Esse apoio é menor, entretanto, em camadas da população nas quais o Partido Democrata, de Biden, tradicionalmente tem mais votos, como entre os jovens e os negros.
A popularidade de Biden já não andava bem e caiu depois do início do confronto entre palestinos e israelenses. É precipitado cravar, neste momento, que Biden perderá a eleição do ano que vem por conta de sua política externa. Mas ele que ponhas as barbas eleitorais de molho. Sob seu comando, os EUA se envolveram em conflitos militares na Ucrânia e, agora, no Oriente Médio, além de manterem uma retórica belicosa e perigosa com a China na questão de Taiwan.
Respondendo à pergunta de uma pesquisa, se os EUA deveriam se envolver menos em resolver problemas alheios, mais de 70% dos eleitores republicanos concordam com a afirmação, mas o preocupante, para Biden, é que 30% dos eleitores democratas também concordam. Na verdade, Biden está numa corda bamba em seu apoio a Israel: a resposta extrema do governo de Netanyahu à agressão do Hamas tem custado isolamento diplomático a seu país e aos EUA, e antipatia crescente na opinião pública internacional.
E mesmo com o apoio à causa israelense, a maioria dos estadunidenses, mostrou outra pesquisa, gostaria de poupar dos horrores da guerra os civis palestinos em Gaza, que estão sendo massacrados pelo exército israelense de maneira simplesmente indefensável, criminosa.
Impacto nos BRICS
Outra dinâmica da guerra entre palestinos e israelenses que pode afetar o Brasil diz respeito aos BRICS. Esse bloco fundamentalmente econômico (bem mais que político ou ideológico) do qual o Brasil é membro fundador, incorporou recentemente seis países, quatro deles do Oriente Médio (Arábia Saudita, Egito, Irã e Emirados Árabes Unidos), um da África (Etiópia) e um da América do Sul (Argentina).
O Brasil era contra essa expansão, mas era do interesse econômico da China, e, como diz o ditado: “quem paga a conta escolhe o cardápio” – a China, sozinha, responde por mais de 60% do PIB do bloco. E está expandindo sua presença econômica e diplomática no mundo árabe e na África. Bancou, então, a entrada nos BRICS dos novos países dessa região (nenhum deles, registre-se, de sólidas credenciais democráticas, o que para a China não importa).
A presença chinesa no mundo árabe solidificou-se, no início deste ano, quando Pequim patrocinou a reaproximação de dois dos países mais importantes da região: o Irã, representante máximo do islamismo xiita e a Arábia Saudita, campeã do islamismo sunita e onde estão localizados os lugares sagrados do Islã, o que lhe confere força moral e prestígio no universo muçulmano.
Ambos têm aumentado o comércio com a China. O Irã, com as sanções internacionais que têm sofrido, vende hoje para China quase todo seu petróleo, exportação vital para o país. A Arábia Saudita sempre foi bastante ligada aos EUA, malgrado criticar, como todo país islâmico, sem exceção, a política de Israel em relação aos palestinos
Para contrabalançar a influência geopolítica e diplomática da China, os EUA estavam a costurar um acordo entre Israel e Arábia Saudita, o que, pelo prestígio saudita, poderia gerar um efeito dominó de abrir novas possibilidades para abrandar o isolamento israelense na região – outros acordos poderiam vir.
Seria um ganho diplomático para os EUA, e um revés para grupos palestinos mais radicais, como o Hamas, que talvez perdessem parte significativa do apoio recebido dos países árabes, no caso de uma eventual melhoria das relações entre eles e Israel. O ataque sem precedentes do Hamas teve, assim, o propósito de cortar essa aproximação Israel-Arábia Saudita. Tem conseguido.
De que forma, porém, a dinâmica eleitoral estadunidense no ano que vem e a nova configuração dos BRICS afetam o Brasil?
Nos EUA, é fato de que o adversário de Biden em 2024 será Trump. Não se deve esquecer que se Trump fosse reeleito em 2020 as forças de extrema direita que tentaram, no 7 de setembro de 2021 e no pós eleição de 2022, um golpe de Estado para sepultar de vez a democracia brasileira, teriam um belo trunfo a mais.
Quanto à reconfiguração dos BRICS no sentido de atender às pretensões chinesas de expansão no Oriente Médio e na África, vale lembrar que a ascensão da China no cenário internacional é um fato, e que o Brasil, como parceiro privilegiado do gigante asiático num bloco econômico cada vez mais sólido, pode e deve tirar proveito dessa situação, estreitando cada vez mais os laços com os chineses, sem que isso signifique romper relações com os EUA ou tomar parte numa rivalidade que não é nossa.
Nesse tabuleiro geopolítico que envolve a relação do Brasil com os EUA, a China e os BRICS, com a América do Sul, com o Oriente Médio, enfim, com o resto do mundo, estão em jogo mais que diplomacia ou política externa. A soberania popular não existe sem a soberania nacional. Soberania nacional, no nosso caso, vai muito além de bandeirinhas, camisa da seleção e hino. Há que se respeitá-los, sim, mas o que interessa mesmo é a defesa dos nossos interesses, que passa, entre outras questões, pelo tipo de inserção do país na divisão internacional do trabalho.
É difícil aumentar direitos, para nossa população tão carente, com o país inserido na ordem internacional como mero produtor/exportador de produtos primários, num modelo em que só o agronegócio possui competitividade internacional, enquanto a maioria dos outros setores operam no limite da sobrevivência, valendo-se, não raro, da precarização e da exploração bruta do trabalho como respiradouro.
Devemos construir uma economia com maior valor agregado para que se viabilize maior justiça social, e o tipo de inserção de nosso país no sistema econômico e geopolítico internacional é condição para essa guinada econômica.
Defender, no cenário internacional, os valores da ponderação, da paz e da dignidade dos povos, como Lula e nossos diplomatas têm feito exemplarmente frente a tragédia do Oriente Médio, deve se conjugar com perseguir, internamente, um projeto de país mais civilizado, democrático e inclusivo. A dignidade do ser humano tem de ser buscada aqui e lá fora. Soberania nacional e popular são duas faces da mesma moeda.
Rubens Goyatá Campante é doutor em Sociologia pela UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras).
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Leia outros artigos de Rubens Goyatá Campante em sua coluna no Brasil de Fato MG.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Larissa Costa