Déficit fiscal de R$177 bilhões em 2023 impulsionou crescimento
O povo gosta de prognósticos, de umas apostas sobre o futuro. Então, vamos lá, deixar o registro sobre o que penso que vai ser 2024 e sua economia política!
Começo pela aparente polêmica entre PT (e outras vertentes da esquerda brasileira) e Fernando Haddad, sobre as linhas mestras de condução da política econômica, que se verbalizou no final de 2023 e, ao que tudo indica, além de precisar ser administrada, parece que vai dar o tom dos debates quanto à política econômica ao longo de 2024. A verbalização mais explícita veio durante o debate entre Haddad e Gleisi Hoffmann, durante Conferência do PT, e consolidada na Resolução do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, que traz a seguinte afirmação: “O Brasil precisa se libertar, urgentemente, da ditadura do BC ‘independente’ e do austericídio fiscal, ou não teremos como responder às necessidades do país”.
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Adianto meu posicionamento: a visão consolidada nessa resolução do PT está correta. Dois são os elementos causadores dessa polêmica e que são fatores que julgo determinantes tanto para os desdobramentos econômicos em 2024 (e anos seguintes) quanto dos desdobramentos políticos de curto prazo (leia-se, eleições municipais):
i) Novo arcabouço fiscal – “regime fiscal sustentável”, consolidado pela Lei Complementar 200, de agosto de 2023 – que entre ponto e desaponto, estabelece uma regra de crescimento limitado das despesas públicas, que a partir de 2024 flutuará entre o mínimo de 0,6% e o máximo de 2,5% ao ano. Percentual de variação esse que dependerá do volume de receitas e do cumprimento da meta fiscal do ano anterior. Logo, para se atingir esse máximo de crescimento de despesas, de 2,5%, a receita primária do ano anterior precisar ter crescido na ordem de 3,5%, uma vez que o arcabouço define que a despesa poderá crescer ao máximo de 70% do crescimento da receita, caso cumprida a meta fiscal do exercício anterior. Mas, caso não cumprida a meta fiscal (déficit ou superávit estipulado, conforme Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO), acionam-se dispositivos de controle fiscal ainda mais rigorosos para o ano posterior, com a permissão de crescimento despesa limitada a 25% da receita do ano anterior, respeitando-se o piso de crescimento de 0,6%. Logo, a definição da meta fiscal passa a ser elemento central.
ii) Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias ao Congresso (LDO) - elaborado pelo Ministério da Fazenda, com a previsão de meta fiscal com déficit igual a zero, e defendido com ferocidade por Haddad, mesmo após declaração do presidente Lula de que a perseguição ao déficit zero não ocorreria.
Como se pode perceber, os elementos se complementam. Isto é, um eventual descumprimento da meta fiscal em 2024, que para se viabilizar envolverá um vigoroso esforço de austeridade, comprometeria, também, 2025, pelo acionamento dos dispositivos previstos no arcabouço.
Mas, o pano de fundo principal é, na verdade, a divergência no entendimento quanto ao papel do Estado na promoção/indução e geração de condições para que ocorram os investimentos necessários aos avanços na qualidade de vida do povo e, mais do que isso, que também são importantes para que se acumule força política para a promoção das mudanças estruturais condizentes com um projeto de emancipação popular.
No fim das contas a LDO foi aprovada pelo Congresso com a manutenção da meta fiscal de déficit zero e com mais algumas surpresinhas no que diz respeito à execução orçamentária de emendas parlamentares, com a estipulação de cronograma obrigatório, com empenhos (reserva de recursos) realizados até o dia 30 de junho. A imposição de cronograma, no entanto, foi vetada pelo presidente Lula, por ser claramente uma medida de completo enfraquecimento do Poder Executivo, numa espécie de “parlamentarismo orçamentário”. Mas, convenhamos, há uma chance enorme de derrubada desse veto.
A jogada da fração majoritária do Congresso é simples de entender: querem ter volume significativo de recursos em suas mãos e com autonomia de determinação do ritmo de execução. Logo, se o Governo acha importante um déficit zero, que se contingencie aquilo que não representa os interesses imediatos dos parlamentares.
Vale dizer que o relator da LDO no Congresso, Danilo Forte (União Brasil) chegou a sinalizar positivamente quanto a possibilidade de previsão de déficit como meta fiscal, mas o Governo – por meio do Ministério da Fazenda – sustentou a manutenção de déficit zero. Tudo isso revela um cenário político complexo e instável, em que o Governo precisa se equilibrar para se sustentar de pé. Não é simples.
Cenário político complexo e instável
Ter ciência da complexidade política do cenário significa dizer, também, que as medidas de Haddad não são absurdas. Elas podem ser questionadas sob o ponto de vista estratégico, quando pensamos um quadro político mais profundo, em que nossos objetivos se ancoram em uma noção de emancipação popular e desenvolvimento, o que não se constrói do dia para noite, mas que também é construção cotidiana.
Em linhas gerais, as justificativas de Haddad e sua equipe partem da constatação de um cenário político adverso, com pressões vindas do Congresso Nacional e do mercado financeiro, com forte influência sobre o Banco Central e, portanto, no comportamento da taxa básica de juros (taxa Selic).
Logo, a sinalização com uma política fiscal de caráter mais expansionista provocaria (na visão de Haddad e membros de sua equipe), em contraparte, uma política monetária contracionista, com manutenção de juros reais em patamares elevados, resguardando ganhos enormes no mercado de títulos e gerando efeitos de desaquecimento da economia pelo encarecimento do investimento e das dívidas contratadas. Mais do que isso, com efeitos fiscais que também seriam perversos, com drenagem do orçamento para o pagamento de volumosos valores com o serviço da dívida interna.
Para se ter ideia, mesmo com uma trajetória de queda da Selic, a partir de agosto de 2023, as despesas com serviço da dívida pública interna superaram os R$ 400 bilhões.
Controle do orçamento
Adicionalmente, há uma nítida pretensão de forças políticas majoritárias no Congresso Nacional de consolidarem o controle sobre o orçamento público, movimento que veio em crescente desde a gestão de Eduardo Cunha e que ganhou uma quase plenitude já com Arthur Lira, durante o Governo de Bolsonaro.
É a velha política do “farinha é pouca, meu pirão primeiro” que tem se mostrado funcional, tanto aos operadores do mercado financeiro, tanto às velhas forças oligárquicas que hoje se fazem representadas por Arthur Lira.
No meio desse tiroteio, Haddad (designado e avalizado pelo Presidente Lula) faz a gestão daquilo que entende como “avanços possíveis”. Nesse sentido, a aprovação de uma histórica reforma tributária (de simplificação e agregação de tributos) – Emenda Constitucional 132 – com grande potencial de ser um mecanismo de barateamento do investimento e distribuição regional de receitas, não é pouca coisa (que passa a vigorar a partir de 2026).
Além disso, no curto prazo (até o final do mandato) a aposta de Haddad parece ser conseguir administrar um razoável padrão de manutenção de políticas públicas, escorando-se em um patamar histórico mais elevado das despesas, conseguido a partir da aprovação da PEC 32 (transição), sem que a realização de esforços de elevação anual de despesas seja necessária (para esse objetivo, em específico).
No entanto, para que tenha sucesso, é necessário que ocorram dois movimentos combinados, que culminam na elevação das receitas:
a) Algum grau de aquecimento da economia que resulte em elevação de receitas;
b) novas receitas, a partir de pequenas reformas no estamento atual de arrecadação, diminuindo o espaço para frustração de receitas. O Ministério da Fazenda tem trabalhado forte nessa agenda, com vitórias na questão do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e a aprovação de mudanças na taxação de fundos exclusivos e offshore.
Mas, enfrenta problemas para a realização de receitas, devido ao que tem chamado de “erosão fiscal”, em função de abatimentos na base de cálculo da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) e do Imposto sobre a Renda de Pessoas Jurídicas (IRPJ), uma herança da Lei Complementar 160/2017, além de decisão do STF, da mesma época, que retirou o ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins.
Resumindo, a atividade econômica não tem gerado a receita tributária que deveria gerar, logo, as estimativas ficam frustradas. Há ainda a questão das desonerações (principalmente as de folha de pagamento), que não possuem efetividade quanto a seus objetivos estratégicos de geração de empregos e outros efeitos positivos sobre a economia brasileira e que, segundo estimativas do Ministério da Fazenda, anualmente representam cerca de R$150 bilhões que a União deixa de arrecadar.
Mas o Governo tem enfrentado dificuldades nessa agenda, tendo o Congresso, recentemente, prorrogado até 2027 desonerações em folha de pagamentos, apesar dos esforços contrários do Governo.
Não acredito que esse posicionamento da equipe do Ministério da Fazenda seja reflexo de uma convicção ideológica ou em princípios ortodoxos da economia. Mas, isso é irrelevante, uma vez que nos importa os elementos e efeitos concretos.
Nesse sentido, entendo que a equipe de Haddad, sujeita a inúmeros fatores de pressão, típicos da atividade executiva (já estive do lado de lá) optou por um encaminhamento estratégico que penaliza a ação de política fiscal como instrumento ainda mais potente de promoção de políticas públicas.
Há uma grande confiança na atuação da Petrobras e na política creditícia via BNDES, como promotores do crescimento ao longo do mandato de Lula. Logo, a posição estratégica do Governo parece ser uma escolha para sua sustentação a partir do atendimento das necessidades mais básicas do povo, que envolve “colocar o pobre no orçamento”, com o atual patamar de gastos públicos (elevado pela PEC 32 – “da transição”). Mas sem tensionar por iniciar um processo de efetiva mudança estrutural da economia brasileira, apesar do desenho de diretrizes estratégicas e incentivos creditícios para o início de um projeto de reindustrialização.
Trata-se de uma linha perigosa, porque o atual patamar de despesas públicas, que circula em torno de 30% do PIB, passa distante de assegurar seja o atendimento das necessidades básicas de cidadania, seja de estruturação mais sofisticada do parque produtivo brasileiro (elementos que merecem análises específicas em outros textos).
Portanto, sem uma política fiscal mais ousada as coisas tendem a se complicar. E aqui aproveito para fazer uma crítica direta ao Ministro Fernando Haddad, não com relação a suas decisões diante do Ministério da Fazenda, mas com relação a sua postura no debate público. Ao ser confrontado sobre possíveis restrições ao crescimento econômico em 2024 que o arcabouço fiscal combinado com uma meta de déficit zero gerariam, o Ministro apresenta contra-argumentos que contribuem para o rebaixamento do debate econômico.
Déficit faz crescer
Ele disse “déficit não faz crescer”. Essa frase, per si, é um desrespeito ao vasto registro histórico do próprio desenvolvimento capitalista. No capitalismo, todo desenvolvimento técnico e tecnológico foi financiado com déficits/dívida pública. A própria mudança estrutural brasileira, com o processo de industrialização a partir da década de 1930, foi financiada por meio de déficits públicos (entre 1930 e 1945, período de intensa transformação da economia brasileira, houve déficit fiscal em todos os anos).
Então, pergunto a Haddad, compreendendo as dificuldades da economia política contemporânea (como exposto acima): como financiar o desenvolvimento brasileiro?
Aliás, é objetivo mudar estruturalmente a economia brasileira ou viveremos de administração da mediocridade, em um eterno ciclo de Sísifo, entre golpes, desconstruções e reconstruções? São perguntas sinceras, para as quais tenho plena convicção de que os objetivos de Haddad estão alinhados com os interesses de transformação. Logo, precisamos e debateremos, queira o Ministro ou não, os aspectos estratégicos.
Haddad reclamou que para o PT “tudo está errado” e, para isso, utiliza-se dos aparentemente bons resultados econômicos de 2023. Os resultados são bons e há um sério trabalho de Haddad e sua equipe envolvidos. Porém, as preocupações com relação a 2024 são mais do que legítimas, principalmente quando observamos com mais atenção os resultados de 2023.
Como crescer
Se tomarmos os resultados do PIB como referência, que deve se consolidar com um crescimento um pouco superior a 3%, verificamos que os resultados são puxados pelas exportações (supersafra – que sim, possui estímulos do Governo, por meio de mecanismos de financiamento da produção) e pelo consumo das famílias. Nesse último quesito há uma forte influência de políticas públicas e da retomada de medidas de controle inflacionário por fora da panaceia dos juros altos. Leia-se: retomada da política de estoques de alimentos, fim da PPI na Petrobras, Novo Bolsa Família, aumento real de salário mínimo, perdão de dívidas habitacionais junto à CAIXA e por aí vai.
Aliás, tudo isso financiado com um déficit programado de aproximadamente R$177 bilhões (cerca de 1,7% do PIB), acordado durante a construção da PEC da transição, diga-se de passagem.
Mas o que preocupa é que a indústria de transformação segue em estagnação, com viés de queda para os setores mais complexos (a desindustrialização continua em marcha forte). Se observarmos mais atentamente ainda, o nível de investimentos da economia brasileira não tem sido suficiente sequer para compensar a depreciação (estoque líquido de capital). Isso significa que há uma tendência à desaceleração e baixa capacidade de resposta da economia brasileira.
Aqui temos um conjunto de fatores: obviamente, a manutenção da taxa de juros real em patamares elevados, o que encarece o investimento e impacta também o mercado de crédito brasileiro, além de gerar fragilidade financeira das empresas; mas há também a influência dos baixos níveis de investimento público.
Para esse último ponto, há a previsão dos investimentos do PAC, na ordem de R$ 60 bilhões previstos para 2024, com cerca de R$ 5 bilhões que ficarão apartados da meta fiscal. Há também os aportes de financiamento do BNDES. Existe, também, a expectativa de aceleração do ritmo de queda da taxa de juros.
Por fim, existem entendimentos para atração de investimentos estrangeiros diretos, negociados alo longo de 2023. Tudo isso combinado pode reativar algum patamar de investimentos, mas sem uma política fiscal mais consistente, com níveis mais elevados de investimento públicos (que não tem chegado a 3% do PIB nos últimos anos), agora, limitados pela meta fiscal e pelos patamares permitidos pelo arcabouço fiscal, os volumes podem ser tímidos frente aos nossos desafios e uma tendência de desaceleração.
Há ainda um forte risco político, com a captura de boa parte do investimento público pelo arco político representado por Arthur Lira, via emendas parlamentares, como sinalizei no início. E os problemas, nesse sentido, são muitos. Começa pelo prejuízo nos efeitos de escala do investimento público, que executados conforme os interesses dos parlamentares, tendem a se fragmentar em pequenas intervenções. Segue pelo prejuízo na capacidade de planejamento e programação dos investimentos.
Por fim, esses recursos tendem a fortalecer os deputados em suas bases e auxiliá-los na eleição para prefeituras. Logo, o recurso público é utilizado para a manutenção da atual correlação de forças que é, atualmente, desfavorável às forças progressistas. Essa é, portanto, uma briga que talvez tenhamos que estar dispostos para correr mais riscos e encará-la de frente, pois influencia em nossa capacidade de acumulação de forças, de mobilização e de avanço em uma agenda de desenvolvimento, em um contexto internacional também muito agitado.
Bem, 2024 será uma maravilha? Certamente não. Será um desastre, também não.
É ano de briga, como sempre.
Um palpite: provavelmente a meta fiscal precisará ser alterada e deve haver reforço no orçamento de investimento, até o limite imposto pelo arcabouço fiscal. Assim, conseguiremos (progressistas) ter um resultado modesto nas eleições municipais, mas manter um patamar de crescimento superior a 2%. Logo, terminaremos 2024 em situação parecida com a que terminamos 2023, mas com uma sinalização positiva para 2025, a depender da capacidade de realização do PAC e das soluções para reativação (mínima que seja) da indústria.
Economista não é futurólogo, apesar de muitos acreditarem, misticamente, que são. Temos que jogar o jogo!
Weslley Cantelmo é doutor em economia pelo Cedeplar/UFMG, Conselheiro CORECON-MG e presidente do Instituto Economias e Planejamento
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
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Edição: Elis Almeida