No dia 12 de dezembro de 2023, foi publicada em alguns portais de notícia, como: Jornal o Tempo, Portal da Cidade e outros, uma matéria com o título “Brumadinho: Acordo Judicial chega a 64%”. Abaixo da chamada vinha o subtítulo: “Vale segue comprometida com as ações de reparação e apoio ao desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo em que investe no Programa de Descaracterização”.
Após o leitor ler a matéria e ver uma série de ações que a Vale supostamente fez na cidade de Brumadinho, ele verá que a fonte da matéria é a própria empresa. Então aquilo que parecia um texto jornalístico, escrito com apuração, nada mais é que uma peça de propaganda da empresa. Como toda peça de propaganda, a Vale tenta passar a imagem de que após a tragédia ela não mediu esforços para reparar os danos à cidade de Brumadinho e aos atingidos.
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Mas isso está longe de ser verdade.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais designou o Núcleo de Cooperação 4.0 para cooperar com a Comarca de Brumadinho nas ações movidas em face da empresa Vale S.A. Desde então, após a distribuição da ação o processo é encaminhado para condução e julgamento pelo mesmo órgão julgador.
Ocorre que, desde que o referido Núcleo passou a atuar nos processos, os atingidos tem sofrido com decisões arbitrárias: desde o indeferimento de gratuidade de justiça por motivos inexplicáveis se comparados a quaisquer outras demandas judiciais (o que obriga os atingidos a pagarem taxas altíssimas ao Poder Judiciário ou desistir de seus direitos); até sentenças que extinguem o processo por motivos fúteis como: comprovante de endereço em nome próprio ou por coisa julgada, situação essa que ocorre devido a um golpe que a Vale aplicou nos atingidos, juntamente com a Defensoria Pública, conforme artigo publicado anteriormente.
Outro pesadelo é o núcleo de perícias que avaliam em massa o estado emocional de quem teve prejuízo à saúde mental. Inaugurado em 8 de maio do ano passado, a Central de Perícias Médicas da Comarca de Brumadinho soou inicialmente como uma grande oportunidade de andamentos célere das ações judiciais.
Mas ao contrário do imaginado, já nas primeiras pericias realizadas foi possível notar que: os peritos nomeados pelo juízo tratam os atingidos com descaso. Há relato de pessoas que se sentiram humilhadas, invertendo a lógica. O atingido é visto como um oportunista que deseja tirar o dinheiro da pobre Vale, desconsiderando a magnitude da tragédia e as provas já apresentadas nos autos. Não há uma clara análise dos documentos médicos juntados nos autos e nem a consideração das informações trazidas pelos periciados no ato médico.
Perícias a toque de caixa
Claramente as perícias são feitas a toque de caixa, com o objetivo de resolver todos os processos de forma acelerada, sem considerar que o ato pericial começou a ocorrer quase cinco anos após o evento danoso, o que de fato prejudica a análise pericial.
Ademais, ocorrem vários agendamentos simultâneos de clientes do mesmo advogado, impossibilitando que ele acompanhe seus clientes durante as perícias.
Em contato com diversos atingidos que realizaram as perícias, a apuração geral é que os peritos estão perguntando aspectos da vida do atingido que nada tem a ver com a tragédia. Não há critério e rigor científico na análise dos atingidos, cada perito conduz a análise como quer. Muitas pessoas relatam que sequer foram questionadas sobre a tragédia durante o ato pericial. Em outros casos as perguntas são feitas de forma muito genérica e aberta, de modo a confundir o periciado.
Isso quando não ficam fazendo pegadinha para que as pessoas caiam em contradição sobre os miligramas de remédio consumido pela vítima. Uma pessoa leiga não é obrigada a saber essas informações, o que um paciente pode saber são os sintomas, pois o diagnóstico quem sabe é o médico. Inclusive essas informações constam nos relatórios e laudos médicos apresentados nos autos. Documentos esses realizados por profissionais, psiquiatras e psicólogos, credenciados, que acompanham as vítimas.
Fazem perguntas rasas como “o sr. acha que foi atingido pela tragédia?”. Ainda, os peritos insistem em perguntas de detalhes de um tratamento longo. Não levam em consideração a dificuldade financeira da pessoa, grau escolaridade ou falta desta, dificuldade de se expressar, quantidade de profissionais disponíveis na cidade, dentre outros.
Ainda, avaliando a vítima como se seu abalo emocional iniciasse agora e não a cinco anos atrás quando do crime ocorrido. Desconsiderando todo o tratamento e acompanhamento psicológico e psiquiátrico passado pela vítima. Partindo do pressuposto que não foram atingidos, que o tratamento pelo qual passaram não possa ter evoluído para a melhora da vítima, ou que essa melhora não lhe dá direito a reparação ao dano emocional sofrido no decorrer desses anos.
Cabe frisar que, a grande maioria dos peritos não possuem especialização em psiquiatria. Foram designados médicos pediatras, legistas, ortopedistas, clínicos e outros. Aceitação um tanto duvidosa por parte do poder Judiciário já que exigem que as vítimas apresentem laudos exclusivamente de psiquiatras e a empresa Vale não aceitou a realização de perícia por parte de psicólogos. Sendo que a perícia realizada por psicólogos ocorre em outros processos judiciais.
Algumas perícias duram até 1 hora, e outras duram menos de 5 minutos. Em alguns casos, os laudos do perito com mais de 30 páginas ficam prontos em menos de 2 horas após a realização da perícia.
O resultado: sempre negando o direito do atingido.
Um ponto inusitado ocorre quando o perito reconhece o dano, mas de um modo surpreendente nega o nexo de causalidade com o rompimento. Isso com todas as provas nos autos de que o periciando nunca havia realizado tratamento médico ou psicológico em data anterior ao rompimento. Não há, portanto, uma justificativa plausível para tais conclusões periciais. Sendo, portanto, contraditório.
Outro ponto a ser considerado é que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) considera o dano à saúde mental do atingido sinônimo de dano moral, o que não guarda lógica. Há, por exemplo, o dano moral presumido o que poderia ser aplicado nesse caso, considerando a extensão imensa dos danos gerados pós tragédia em Brumadinho.
Derrota dos atingidos
Todos os atingidos saem da perícia com a sensação de derrota, tristeza, revolta, humilhação e com a sensação de que todos os peritos já estão tendenciosos a negar o dano e o nexo de causalidade.
É tão absurdo que, se considerarmos essa atitude razoável, teríamos o seguinte ponto: o perito, após fazer 6 perícias em um dia, escreveu 6 laudos, de 30 páginas cada um e os entregou no mesmo dia. Então, seriam 180 páginas escritas em um dia. Todas dizendo que o cidadão de Brumadinho não sofreu danos com a tragédia. Isso não é razoável.
Pouquíssimas perícias têm resultado com laudos favoráveis aos atingidos, a estimativa é que sejam menos de 10% do total realizado até agora. Somente essas é que vão para as audiências para tentativa de acordo na central de Conciliação do TJMG. Portanto, apenas uma ínfima parte dos atingidos tem a possibilidade real de formalização de acordo.
Mesmo os 10% de casos que vão para audiência de conciliação a Vale não realiza acordo com todos, ou seja, apenas 64%, como ela mesma disse. A grande maioria dos atingidos é tratada com descaso, o perito já tem o diagnóstico antes da realização da perícia.
O preconceito contra os atingidos está instalado. Não há boas expectativas.
É desesperançoso acreditar em julgamentos justos sendo feitos em cima de perícias realizadas a toque de caixa.
Infelizmente as perícias em outros campos, como dos prejuízos às moradias da zona quente, no Parque da Cachoeira, por exemplo, não têm sido diferentes.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, aparentemente, só quer extinguir processos.
Ousamos dizer, que o que ocorre em Brumadinho são inúmeros crimes continuados.
A Vale não quer reparar. Ela quer garantir seus lucros e se sair bem na opinião pública, publicando matérias que distorcem a realidade diariamente. Mesmo que isso custe vidas. Pois ainda temos pessoas adoecidas e vários suicídios.
Luana de Amorim e Silva Alves é advogada e moradora de Brumadinho.
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida