Inovação científica não deve ser avaliada apenas pelos resultados econômicos
Estão em curso, neste momento no país, pelo menos três grandes Planos Nacionais relativos a políticas públicas que afetam a todos: o Plano Nacional de Educação, o Plano Nacional de Pós-Graduação e as Estratégias Nacionais de Ciência e Tecnologia.
Em todas essas políticas, mas sobretudo nas duas últimas, uma das palavras de ordem é, justamente, a inovação. Também nas três áreas, a tradição não é muito bem quista, ainda que as ciências humanas e sociais e os ativistas das mais diversas áreas busquem chamar a atenção para o fato de que não há inovação sem tradição e vice-versa.
A propósito da Ciência e Tecnologia (C&T), é sintomático disso que, nas últimas décadas, a palavra “inovação” tenha passado a ocupar um lugar estruturante nos discursos e nas políticas de Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I), a ponto do próprio Ministério da Ciência e Tecnologia ter assumido, também, a designação de MCTI desde 2011. Em praticamente todos os discursos que apresentam ou justificam a mudança, é como, se assim fazendo, estivéssemos tornando o Ministério contemporâneo de seu próprio tempo.
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Em 2010, eu participei de uma Comissão que tinha o propósito de organizar o Eixo 3 da IV Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Sustentável que tratava da CT&I para o Desenvolvimento Social.
Numa das reuniões da Comissão, um colega da UNICAMP defendeu que a gente deveria buscar novas formas, ou outras palavras, para dizer do que a gente queria, e não entrar na “mania” da inovação, palavra que, segundo ele, estava marcada por um modo de entender as ciências e o desenvolvimento que pouca relação mantinha com a sustentabilidade, o que, de fato, interessava à maioria da população.
Naquele momento, quase que unanimemente, a Comissão tomou partido contra o colega que defendia tal posição e se propunha a “disputar” os sentidos da inovação para atribuir-lhe um caráter menos excludente e menos atrelado à inovação capitalista. O que se propunha era um sentido de inovação que a associasse às boas tradições relacionadas aos conhecimentos trazidos pelos movimentos sociais e povos tradicionais.
No entanto, no âmbito mesmo da realização da Conferência, pude perceber, em diversos momentos, o quanto estávamos sendo ingênuos: o nosso colega da UNICAMP estava coberto de razão e, àquela altura, era impossível disputar os sentidos da coisa. A ideia de inovação havia sido apropriada pelos grupos mais próximos ao empresariado e muito pouco, ou quase nada, dialogava com as noções de saberes, conhecimentos e culturas tradicionais. A disputa era, por certo, tão política quanto epistemológica, mas ela se dava com uma desigualdade abissal de condições.
Mais recentemente, pude acompanhar, e criticar, a cerimônia em que o Governo de Minas Gerais, por meio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), dizia buscar apoiar a pesquisa e a inovação em Minas Gerais. Para a festa, chamou, claro, a comunidade acadêmica e as instituições empresariais. Nenhuma representação de movimentos sociais, povos tradicionais ou, mesmo, de sindicatos ou organizações de trabalhadores.
Inovação não é neutra
E isso não pareceu estranho a nenhum dos presentes, muito menos à “comunidade científica” ali representada, assim como não parece preocupa-la, hoje, no campo da educação, a aderência entre a inovação e o empreendedorismo proposta por governos como o de Romeu Zema (Novo).
Parece esquecer, a “comunidade científica”, ou parte significativa dela, que a inovação, assim como as ciências, não é neutra. A inovação científica e tecnológica, apropriada pelo capitalismo, tem significado, aqui e agora, a destruição das populações humanas e não humanas que habitam o planeta, a destruição da biodiversidade, a destruição dos empregos, a concentração de renda, o aumento da pobreza e o enfraquecimento da própria democracia.
De outra parte, são os povos tradicionais, com seus conhecimentos sobre o mundo, sobre o planeta, que têm contribuído para manter de pé a perspectiva de que podemos não apenas adiar, mas verdadeiramente evitar o fim do mundo (pelo menos por um tempo geologicamente significativo).
Inovação e tradição não são termos ou fenômenos contrários um ao outro e, muito menos, neutros. Tradição e inovação também não são boas ou ruins per si, depende dos conteúdos que trazem, dos fenômenos que nomeiam e dos projetos políticos-sociais-culturais de que participam.
Uma política de inovação científica, por exemplo, não deveria ser avaliada apenas e tão somente pelos resultados econômicos ou, mesmo, científicos que traz, mas pelo que resulta em relação à qualidade de vida, à divisão de renda, ao bem-estar das diversas populações que habitam o planeta, ao fortalecimento da democracia, enfim, àquilo que produz, ou não, de qualidade de vida para a maioria da população.
Bem sei que é impossível conseguirmos garantir o bem viver para as diversas populações que habitam o planeta sem conhecimentos científicos e sem alguma inovação. Mas é também certo que não conseguiremos esses mesmos resultados tendo uma visão otimista e desavisada da inovação, como quer o empresariado e boa parte da comunidade científica que fazem loas ao lema.
Muitas vezes, as inovações podem ser muito mais conservadoras do que as tradições, inclusive as científicas, que querem combater ou substituir!
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo e doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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Leia outros artigos de Luciano Mendes de Faria Filho na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida